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Reforma, Modernização ou Pseudomodernização das Organizações da Saúde: o caso dos Cuidados de Saúde Primários

Carlos Rodrigues – Doutor em Gestão; Coordenador do curso de PG de Gestão da Saúde.

Catarina Afonso – Doutora em Enfermagem; Pós-graduada em Gestão da Saúde.

Helena Costa – Técnica Superior de Diagnóstico; Pós-graduada em Gestão da Saúde.

Resumo

O conceito de governação em saúde nos Cuidados Primários foi amplamente expresso nos documentos da Reforma dos Cuidados de Saúde Primários, tendo constituído um referencial à modernização dos Cuidados de Saúde. A presente reflexão teve origem nos princípios da governação em saúde para um questionamento face ao efetivo processo de modernização dos Cuidados de Saúde Primários (CSP). Na verdade, ao fim de 12 anos, o processo de reforma continua, não tendo havido repercussões significativas para além da constituição das Unidades de Saúde Familiares. No que respeita à modernização, esta também, não resultou de acordo com as expetativas gerais. No nosso entender este imobilismo deve-se à falta de autonomia e responsabilização das atividades, por ausência de um modelo de governação integrada.  

A necessidade de mudança

Reconhecer os CSP como centrais nos sistemas de saúde é potenciar resultados em saúde para os cidadãos (solucionam acima de 90% dos seus problemas de saúde), é conferir qualidade na sustentabilidade económica, na eficiência e na acessibilidade ao setor da saúde (Magalhães, 2015).

A reforma dos CSP pretendia autonomizar a cultura de gestão, mas ficou aquém. Para Neves & Pessoa (2014) está-se perante duas reformas com velocidades e ideologias diferentes, a reforma da saúde e a económica. A primeira, baseada num modelo de governação integrada, ansiada pelos profissionais de saúde, com envolvimento ativo e empenhado na sua prossecução e operacionalização. No entanto, a reforma económica, burocratizada e sem força motriz, assenta num modelo de governação centralizado e excessivos trâmites administrativos. A autonomia de gestão dos ACES e a correspondente responsabilização são, em geral inexistentes, mantendo-se em direta e estreita dependência das ARS.

Citando o Grupo Técnico para a Reforma da Organização Interna dos Hospitais (2010, pp.2) “a nova cultura de gestão que se esperava que emergisse da reforçada autonomia conferida à instituição hospitalar não aconteceu, persistindo a indefinição estratégica, o planeamento incipiente ou inexistente, a falta de transparência nos processos de decisão, tudo concorrendo para a desresponsabilização e para a ausência de envolvimento da organização”.

Esta conclusão espelhada em contexto hospitalar assemelha-se ao contexto dos CSP. A operacionalização da reforma e modernização dos CSP não aconteceu porque não foram criadas condições de uma nova cultura organizacional de autonomia e responsabilidades de gestão.  Segundo Schein (1964 cit in Rodrigues, 2011), a cultura organizacional é o “padrão de pressupostos básicos que um dado grupo inventou, descobriu e desenvolveu, aprendendo a lidar com os problemas de adaptação externa e integração interna, e que têm funcionado suficientemente bem para serem considerados suficientemente válidos e serem ensinados aos novos membros como o modo correto de compreender, pensar e sentir, em relação a esses problemas”.

Ora, a cultura organizacional que ainda persiste, foi instituída com a influência do Período do Estado Novo, em que o modelo de governação das administrações públicas se carateriza por centralizar excessivamente no Poder Político todos os tipos de decisão, sendo oposta à atual filosofia de centralidade no cidadão.

Atualmente, os modelos e procedimentos para governar organizações complexas, como são as organizações da saúde, não podem pretender atuar numa perspetiva de unidade que anule a diversidade. Hoje, a governação organizacional assenta numa gestão da heterogeneidade. Para tal, é necessária outra maneira de entender o poder e transitar para um modo mais relacional e cooperativo, que não seja pensada exclusivamente na base de modelos de hierarquia e de controlo. As possibilidades de configuração estrutural enunciam-se atualmente com maior predominância na liderança, influência, diplomacia, entendimento e deliberação.

Podemos facilmente defender que o tradicional modo de dirigir as organizações da saúde, ou seja, a definição do modelo de governação exige uma efetiva reforma para que os gestores aos vários níveis possam efetuar uma verdadeira e permanente modernização e não ficarmos apenas por uma pseudomodernização.  

Há uma nova lógica de gestão que ainda não é verdadeiramente praticada nas organizações de saúde. Esta lógica coloca muitos problemas aos atuais dirigentes, os quais não têm, muitos deles, uma verdadeira consciência, impedindo-os de porem em prática novas ideias. Não deixa de ser verdade que o mundo, através desta nova lógica, começa a aparecer sob uma luz diferente, e que, com a nova capacidade de raciocinar sobre os factos que traz, liberta também a capacidade de imaginar e criar.

Com base no novo contexto, da sociedade do conhecimento, o problema com que nos confrontamos é o de pensar e pôr em prática uma governação organizacional que proporcione uma gestão adequada à nova realidade. A ideia de um novo modelo de governação integrado inerente às organizações da saúde surge precisamente como resposta à verificação do esgotamento de competências, ao nível do vértice estratégico, como a sua ausência na linha hierárquica. Na verdade, os sistemas complexos não podem ser governados a partir de um único vértice estratégico e uma longa cadeia hierárquica baseada predominantemente na identificação político-partidária, em vez, do reconhecido mérito do conhecimento. Todos sabemos que numa sociedade do conhecimento diminui a disposição para aceitar as decisões adotadas de maneira hierárquico-administrativa ou pouco transparentes. Exigem-se, pelo contrário, novas formas de participação e comunicação com todos os interessados.  

A escassez de recursos humanos e a dispersão geográfica das UF também têm contribuído para a desaceleração do processo de modernização, bem como a resistência à mudança por parte de profissionais mais velhos com carreiras estabilizadas e/ou próximos da entrada na reforma (Neves & Pessoa, 2014).

De acordo com o Bilhete de identidade dos CSP BI-CSP (2020) em Portugal Continental existem 5 ARS, designadamente ARS do Norte, Centro, de Lisboa e Vale do Tejo, do Alentejo e do Algarve. A ARS do Norte é constituída por 24 ACES, a do Centro por 9 ACES, a de Lisboa e Vale do Tejo por 15 ACES, a do Alentejo por 4 ACES e a do Algarve por 3 ACES, totalizando 55 ACES em Portugal. Todos os 55 ACES possuem Diretores Executivos (DE), Conselhos Clínicos e de Saúde (CCS), Unidades de Apoio à Gestão (UAG) e Gabinetes do Cidadão (GC). Embora cada um deles possa ser avaliado segundo o Índice de Desempenho Global (IDG), criado pela mesma metodologia, todos têm uma dinâmica e desenvolvimento próprios. Contudo, poucos ACES operacionalizam os Conselhos da Comunidade (CC) e/ou raramente incluem o presidente do Conselho da Comunidade no Conselho Executivo (Rodrigues & Felício, 2017).

Análise Crítica

Ao fim de doze anos da reforma dos CSP, a potencialidade perspetivada para os CCS para sustentar o desenvolvimento da Governação Clínica ficou aquém das expetativas (Rodrigues & Felício, 2017). O contrato-programa, descrito no Decreto-Lei 28/2008, de 22 de fevereiro, é exemplo disso, pois embora legislado. não foi objeto de regulamentação. O nível de autonomia projetado para os ACES acabou por não ser operacionalizado, embora em oposição ao nível do desenvolvimento das estruturas tenha sido potenciado, isto é, houve um crescimento das unidades funcionais (UF) com maior aproximação à comunidade. Um dos desafios, ainda em desenvolvimento, é o processo de contratualização, que se constitui como meio de autonomização dos ACES (contratação de objetivos com base nas necessidades de saúde e nos recursos disponíveis ocorrendo em dois subprocessos, a contratualização externa realizada entre as ARS e os ACES, e a contratualização interna, realizada entre os ACES e as UF (Firmino-Machado, 2017).

Acrescenta-se que os CSP, como parte fundamental do SNS, têm sido fortemente pressionados a produzir um serviço público com maior qualidade melhorando os índices de eficiência, eficácia e economia. A ideia de estratégia é precisamente a capacidade de adotar uma gestão para criar opções futuras em vez de sermos conduzidos pelos acontecimentos. Nesta perspetiva, uma das ferramentas possíveis que pode contribuir para o avanço da reforma dos CSP, tendo em conta a necessidade da gestão estratégica dos recursos públicos e da medida e avaliação de desempenho, é o recurso ao Balanced Scorecard (BSC).

O BSC é um sistema de gestão estratégica desenvolvido na década de 1990, com aplicação no setor público, nomeadamente na Administração da Saúde. O BSC assenta em quatro perspetivas (Fig.1): a financeira, dos utentes, dos processos internos e a da aprendizagem e crescimento.

       

Perspetiva Financeira tende a responder à questão “Como nos vêm os acionistas?”, agregando os indicadores de performance que revelam importância para o ponto de vista dos acionistas/investidores/gestores (Gomes et al, 2010), percebendo-se que a valorização financeira dos CSP está concentrada nos serviços centrais, embora com algum financiamento dos utentes. Esta centralidade condiciona a sua autonomia, estando dependente da estrutura central. Na reforma dos CSP, a contratualização surge como estratégia descentralizadora, autonomizando as ARS. A contratualização estabelece por negociação os objetivos, o modelo de monitorização de desempenho e de avaliação final, permitindo que os cuidados prestados sejam orientados para as necessidades em saúde de uma população. Desta forma, a contratualização permite a introdução de mecanismos de correção no funcionamento dos sistemas de saúde, contribuindo para uma maior equidade (Escoval, Santos & Barbosa, 2016). O primeiro ato de contratualização efetuou-se entre as USF e as ARS. O processo de contratualização interna, entre os ACES e as USF (bem como as outras unidades que os constituem), só foi concretizado em 2011.

Atualmente, a contratualização decorre num modelo desenhado para USF, embora aplicado a todas as outras UF. Por outro lado, as UCC, USP e URAP, que respondem a necessidades relacionadas com a vulnerabilidade e fragilidade das comunidades, acabam por estar praticamente dependentes do financiamento sem contribuição dos utentes. Em alguns ACES a contratualização acontece tardiamente, acabando por não ter o efeito desejado (BICSP, 2021).

Perspetiva dos Clientes / utentes pretende a responder à questão “Como nos vêm os clientes?” Como será que os cidadãos visionam os CSP? A melhoria da qualidade do serviço está, segundo Pereira (2003, cit in Mendes et al, 2013), associada aos procedimentos, ato de atendimento, qualidade do serviço prestado pelos profissionais de saúde, qualidades dos equipamentos e desempenho. Ora, tudo isto implica na perspetiva de como os utentes consideram os CSP. Os utentes geralmente apresentam um alto grau de satisfação em relação aos CSP, atribuído manifesta importância à relação de proximidade e comunicação com os profissionais de saúde. Nesta perspetiva, a proposta de valorização dos CSP deve assentar no desenvolvimento de um relacionamento de confiança com os utentes. A confiança dos CSP tem aumentado com o desenvolvimento das USF, que constituíram a marca mais visível da reforma dos CSP. No entanto, é de referir que o acesso a esta tipologia de cuidados ainda não é universal, estando muitos utentes afetos a UCSP.

Perspetiva dos Processos Internos Esta perspetiva tende a responder aos processos de excelência. Nestes, terá de ocorrer resposta às necessidades da sua comunidade, representando valor para a mesma. Se os cuidados forem excelentes, ganham valor para a comunidade, e sendo rentabilizados, diminui-se o desperdício de recursos e de energia. É essencial um trabalho de fundo com as equipas, delegando-lhes poder para melhorar a capacidade de gestão e reforçar o capital humano (talento intelectual dos profissionais), rentabilizando-o na organização das equipas. Por outro lado, o Estado, com carácter financiador, prestador e regulador, dificulta a operacionalização da reforma, porque impede a viabilização da autonomia das estruturas operacionais. Esta postura do Estado centralizado dificulta a aplicação do conceito de boa governação, bem como a aplicação do modelo de gestão integrada (Rodrigues, 2011).

Perspetiva da Aprendizagem e Crescimento tende a responder à questão “Como continuar a inovar e a criar valor?” agregando os indicadores de performance que são relevantes ao nível da aprendizagem e crescimento . Neste vertente é importante criar uma cultura de estudo e investigação, proporcionando oportunidades de formação para os profissionais. Tudo parece indicar que a Reforma dos CSP está assumida com maior expansão na Região Norte, sendo a região do país com mais USF em atividade (quer em termos absolutos, quer em termos percentuais, quando comparado com a população residente avaliada pelos Censos 2011, ou inscrita nos ACES). Parece ser importante a partilha de saberes e boas práticas entre as ARS, potenciando estratégias positivas no reforço da reforma dos CSP.

Embora não generalizada, a aplicação prática do BSC nos ACES, também não tem alcançado o sucesso que se esperava, dadas as dificuldades de harmonizar a informação face ao que é imposto pelas ARS e à ausência de conhecimentos de gestão a nível intermédio.

Com efeito, a aplicação da gestão estratégica nos ACES carece, antes de mais, de um enquadramento de autonomia e de responsabilidades definidas e assumidas no modelo de governação organizacional, o que não é por enquanto o caso dos cuidados primários.  

Assim, no contexto atual dos CSP em Portugal, o modelo de governação parece apresentar-se, como uma prioridade para a organização e gestão dos ACES. “O ACES deverá ser responsável pela execução orça­mental respeitante aos meios técnicos e materiais, bem como a gestão corrente do edificado e infraestruturas. O orçamento definido deve ter em consideração os utentes, o contexto geodemográfico e socioeconómico e a sua carga global de doença. Competirá ao ACES reinvestir as verbas alocadas e não utilizadas por ganhos de eficiência. Este reinvestimento poderá ser feito, por exemplo, em formação e investigação (Firmino-Machado J, et al. 2017, pp. 432-433).

Os Conselhos Clínicos terão de afirmar-se como pró-ativos e os parceiros mais capacitados para a construção da Governação Integrada nos ACES. As Unidades organizacionais dos ACES terão de garantir uma boa governação clínica e assegurar que as suas atividades/intervenções (quer sejam de base individual, grupal ou populacional) são efetivas e se encontram alinhadas com as prioridades e objetivos de melhoria do estado de saúde da população, definidos no Plano Local de Saúde (Rodrigues & Felício, 2017, pp.20)

Conclusão

Regressando à questão de partida “A reforma, modernização ou pseudomodernização dos Cuidados de Saúde Primários” é consensual de que muito há ainda a fazer. Na verdade, o projeto de reforma é vanguardista e com desafios para a marca dos CSP. As USF foram a maior expressão da reforma, mas o potencial da modernização é muito maior e não está a ser devidamente desenvolvido.

Atualmente, embora se fale em autonomia o que se observa é a centralização da tomada de decisão nas ARS e nos próprios gabinetes ministeriais. Na gestão das UF é aparente a existência de poder de decisão e os ACES parecem desenvolver uma gestão intermédia com pouco espaço de manobra.

Assim, face à centralização excessiva do poder de decisão, continua a ser grande a dificuldade de efetuar mudanças. É ao nível organizacional que as mudanças mais realistas e efetivas podem ser alcançadas. Porém, é necessário que um modelo de governação organizacional possa permitir a descentralização da tomada de decisão e a efetiva autonomia dos ACES, com reflexos reais para todas as UF.

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