Breve reflexão sobre a situação legal atual, comparações com outros sistemas com sistemas de financiamento semelhantes, a crise pandémica e possíveis impactos nas Políticas Públicas em Saúde
Miguel Sousa Neves
Presidente da Direção da SPGS, Mestre em Gestão de Serviços de Saúde, Ex-Presidente da Direção da Competência em Gestão dos Serviços de Saúde da Ordem dos Médicos
INTRODUÇÃO
A alínea1 do artigo 64º da Constituição da República Portuguesa confere à população o direito à proteção da saúde sendo que na alínea 2 esclarece que esse direito é realizado através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito. (1)
A lei de Bases da Saúde, aprovada pela Lei nº 169/2019, de 4 de setembro, constitui umas das mais relevantes e polémicas concretizações normativas deste direito à proteção da saúde. (2)
Na sua Base 1 refere que o Estado promove e garante o direito à proteção da saúde através do Serviço Nacional de Saúde (SNS), dos Serviços Regionais de Saúde e de outras instituições públicas, centrais, regionais e locais.
Na sua Base 2 expressa que os cidadãos têm o direito de aceder aos cuidados de saúde adequados à sua situação, com prontidão e no tempo considerado clinicamente aceitável, de forma digna, de acordo com a melhor evidência científica disponível e seguindo as boas práticas de qualidade e segurança em saúde.
Na sua Base 4 refere as pessoas, como elemento central na conceção, organização e funcionamento de estabelecimentos, serviços e respostas de saúde; a gestão dos recursos disponíveis segundo critérios de efetividade, eficiência e qualidade e o facto de caber ao membro do Governo responsável pela área de saúde propor a política de saúde a definir pelo governo, promover a respetiva execução e fiscalização e coordenar a sua ação com a dos outros ministérios e entidades.
Na sua Base 25 informa que poderão ser celebrados contratos com o setor privado, setor social e profissionais em regime independente apenas quando o SNS não tiver, comprovadamente, capacidade para a prestação de serviços em tempo útil, condicionados à avaliação da sua necessidade. Por último na sua Base 37 informa que os programas, planos ou projetos, públicos ou privados, que possam afetar a saúde pública devem estar sujeitos a avaliação de impacto, com vista a assegurar que contribuem para o aumento do nível de saúde da população.
O SNS é assim um conjunto de instituições e serviços maioritariamente públicos que têm uma hierarquia definida com o objetivo de prestar cuidados de saúde aos cidadãos que vivem em Portugal funcionando sob superintendência ou a tutela direta do Ministro da Saúde de acordo com o estipulado no artigo 1º do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, aprovado por decreto-lei nº 11/93, de 15 de janeiro. (3)
Verifica-se também que a efetivação do direito constitucional à proteção da saúde é garantida primariamente pelos serviços próprios do Estado com o apoio supletivo e temporário de serviços de saúde do setor social e privado apenas quando o SNS assim o entender.
Daqui resulta necessariamente uma multiplicidade de questões que se prendem não só com o “duplo papel do Estado” quer enquanto responsável pela definição de políticas de saúde e sua regulação e fiscalização quer enquanto prestador principal de cuidados de saúde como também como financiador e prestador dos mesmos cuidados.(4)
Mais ainda, remete para o Ministro da Saúde a definição a todo o momento das políticas de saúde e a concretização no terreno desse mesmo planeamento. O artigo 23º, nº1 do Decreto-Lei nº 251-A/2015 de 17 de dezembro, refere especificamente que ao Ministro da Saúde incumbe a missão de conduzir, executar e avaliar a política nacional de saúde e em especial do Serviço Nacional de Saúde, garantindo uma aplicação e utilização sustentáveis de recursos e a avaliação dos seus resultados, algo que é amplamente fortalecido pela recente lei de Bases da Saúde.
No respeitante a modelos de políticas públicas de saúde, e no contexto do presente artigo, referencio 3 sistemas nacionais de saúde onde é possível estabelecer coerência e fundamentação de base. (5,6)
- O sistema Bismarckiano dependente de seguros de saúde públicos, de acesso garantido com liberdade de escolha e vasta oferta. Este modelo encontra-se em países como a Alemanha, França e Japão;
- O sistema Beveridgiano, dependente de impostos e fundos de Estado, de acesso universal com unidade e uniformidade dos serviços. Podemos verificar este tipo de modelo em países como a Inglaterra, Dinamarca e Nova Zelândia;
- O sistema de Mercado que depende de seguros privados de saúde, tem acesso limitado, com liberdade de escolha e vasta oferta sendo o mais comum em países com organização muito limitada dos seus serviços de saúde, mas também em outros, como os Estados Unidos da América e países na sua esfera de influência, onde há uma organização muito diferenciada, mas onde o sistema político tem preferido um modelo preferencialmente fora da área direta do Estado. Sendo o modelo português de matriz Beveridgiana, e porque a atual lei de Bases de Saúde coloca no SNS o ónus da proteção da saúde do cidadão com o controlo direto do poder político do momento, é importante que qualquer comparação se faça com modelos idênticos, mas com sistemas de organização diferentes e mais autónomos como são os casos dos sistemas dinamarquês e inglês.
BREVE CARACTERIZAÇÃO DAS POLÍTICAS E FUNCIONAMENTO DO SISTEMA NACIONAL DE SAÚDE
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS) o sistema de saúde tem sido definido como abrangendo “todas as organizações, instituições e recursos devotados à produção de ações de saúde”. Sendo que as ações de saúde são qualquer intervenção em cuidados de saúde individuais, serviços públicos de saúde ou iniciativas intersectoriais, cujo propósito é melhorar a saúde. (7)
O Sistema Nacional de Saúde Português incorpora, para além do SNS com funções públicas e de acesso universal, alguns subsistemas públicos de saúde como a ADSE, os diferentes ramos das Forças de Segurança e instituições como o SAMS que apoiam uma fatia considerável de consumidores em saúde e ainda os setores social e privado.
Os subsistemas foram criados para apoio na doença aos seus funcionários e familiares, têm um grau relativamente limitado de autonomia política embora dispondo de mecanismos próprios de gestão e sendo atualmente subsidiados por uma percentagem do vencimento dos próprios funcionários.
O setor social compreende na sua grande maioria as Misericórdias que têm uma rede crescente de prestação de cuidados de saúde com relevância para os cuidados continuados e apoio de retaguarda às unidades hospitalares. Para além das Misericórdias também existem as Mutualidades e outras pequenas associações de apoio à população, quase todas com convenções com o SNS. (8)
O setor privado tem tido um crescimento exponencial nos últimos anos pois proporciona uma maior rapidez no acesso a cuidados, maiores níveis de conforto, a possibilidade de escolha do médico, localização preferencial da entidade prestadora de serviços ao mesmo tempo que preenche lacunas ou fragilidades da oferta pública como na medicina dentária e tempos de espera longos no SNS para consultas e cirurgias. A sua ligação às seguradoras de saúde e subsistemas públicos favorece o seu crescimento sustentado assim como as convenções que detém com o setor público. (9)
Embora o Sistema Nacional de Saúde englobe todas as instituições prestadoras de cuidados de saúde em Portugal é importante salientar o papel fulcral do SNS amplamente reforçado pela recente Lei de Bases de Saúde.
O SNS integra todos os serviços e entidades públicas prestadoras de cuidados de
saúde, designadamente os agrupamentos de centros de saúde, os estabelecimentos hospitalares e unidades locais de saúde. (10)
Integra também de forma indireta todas as instituições do setor privado e social com o qual tenha convenções em áreas específicas. A gestão dos recursos financeiros, patrimoniais e humanos do SNS e a sua articulação com os setores social e privado é feita, a nível central, pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) e a nível periférico, pelas Administrações Regionais de Saúde (ARS).
Tendo em consideração o ritmo crescente dos gastos em saúde, bem como o objetivo de obtenção de ganhos efetivos e progressivos em saúde, tem surgido uma crescente preocupação por garantir organizações economicamente sustentáveis, com uma eficiente alocação de recursos. (11)
Ao longo dos últimos anos tem se tentado reorganizar o modelo de gestão no SNS pela aplicação de processos e métodos do tipo empresarial na Administração
Pública tradicional. É nesta perspetiva que se entende a flexibilização, ainda que tímida, dos modelos de unidades hospitalares e a introdução do modelo empresarial de cuidados primários de saúde culminando com o que se denomina de contratualização que, no fundo, é uma ferramenta através da qual se criam incentivos à adoção de melhores práticas de governação clínica tendo em vista a satisfação de necessidades assistenciais num contexto de gestão equilibrada e eficiente dos recursos existentes no âmbito do SNS. (10,12) Este processo de contratualização tenta alterar a cultura dominante de controlo vertical que, no entanto, se viu reforçada pelas alterações políticas da recente Lei de Bases da Saúde.
A flexibilização então obtida, inclusive pela criação de parceiras público-privadas (PPP) no setor público hospitalar, tem vindo a sofrer alguma retração mantendo-se a figura centralizadora no Ministro da Saúde de todas as principais ações de gestão do SNS e por consequência do Sistema Nacional de Saúde.
A grave crise pandémica provocada pelo vírus SARS COV 2 veio testar a resiliência do SNS permitindo a delegação de poderes da atual Ministra da Saúde em várias unidades de cuidados primários e hospitalares com a tomada de medidas de emergência, nomeadamente pelo Centro Hospitalar Universitário de S. João no Porto, que se presume algumas possam vir a ser estruturantes para um melhor desempenho futuro dessas mesmas unidades e abrir novos caminhos no domínio das políticas públicas de saúde em Portugal que de outra forma continuariam encerrados.
MODELOS DE FUNCIONAMENTO DOS SISTEMAS DINAMARQUÊS E INGLÊS
Os sistemas de saúde dinamarquês e inglês são do tipo beveridgiano assentes numa forte componente pública e de cobertura universal. São, no entanto, modelos extremamente descentralizados promovendo a participação das comunidades locais na definição e execução de políticas de saúde e a separação efetiva das funções de gestão do sistema, da atividade de prestação de cuidados.
O modelo inglês é já um sistema completamente autonomizado por uma forte
descentralização de competências do governo central na área da saúde. Neste modelo optou-se por uma participação formal de agentes locais na definição e execução da política de saúde – os designados Clinical Commissioning Groups – responsáveis por assegurar a contratualização de prestação de cuidados, o que configura um modelo de colaboração estável entre as entidades para o planeamento e avaliação de serviços, a identificação das prioridades de atuação e alocação de recursos, desenvolvimento de estratégias de coordenação e defesa dos interesses dos cidadãos. (13,14)
Na Dinamarca cada uma das 5 regiões assume um papel muito relevante na área de saúde, com responsabilidades quer na organização dos cuidados primários de saúde, quer nos cuidados hospitalares, tendo a responsabilidade de negociar com o Estado o financiamento anual que suporta a contratualização que promovem no domínio dos cuidados de saúde. Também os municípios assumem responsabilidades de gestão do sistema, participando inclusive nas negociações de contratualização com os profissionais de saúde e assumindo responsabilidades em providenciar determinados serviços de saúde, nomeadamente ao nível da saúde pública. (15)
Nestes sistemas de saúde, marcados por um fortíssimo financiamento público, aliado a um considerável grau de liberdade de escolha conferido aos utentes dos
serviços de saúde, com diferentes graus de intensidade quanto à titularidade dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde, há uma organização central do sistema que é independente do poder político do momento na sua ação executiva.
Na Dinamarca a regulação geral, planeamento e supervisão dos serviços de saúde é realizada a nível nacional, através do Ministério da Saúde que delega esses atributos numa unidade com ampla autonomia que se denomina a Danish Health Authority. Por sua vez a Danish Health Authority aconselha as autoridades regionais que são as promotoras das contratualizações dos serviços de saúde quer com entidades públicas quer com privadas. O financiamento é assegurado a nível nacional havendo sempre uma percentagem de 8% das receitas do orçamento de Estado afetas à saúde, mas a decisão na aplicação e supervisão do financiamento é na prática assumido pelas autoridades regionais e municipais.
Em Inglaterra, o NHS England é uma entidade autónoma que ocupa o centro da organização e gestão do sistema de saúde. Apesar de integrada no Ministério da Saúde, é completamente independente do ponto de vista operacional respondendo diretamente perante o Parlamento. A NHS England tem poderes executivos de gestão no sistema de saúde, responsabilidade de controlo e gestão de todo o orçamento da saúde, autorização e supervisão das Clinical Commissioning Groups e de promoção da sua autonomia articulando com o NHS Improvement a definição de critérios de classificação das entidades que prestam serviços de saúde. O governo não tem qualquer interferência no processo de seleção dos administradores do NHS England cujo CEO é recrutado num processo de seleção a nível mundial.
Tanto o sistema inglês como o dinamarquês, inseridos no que se conhece como o modelo de Beveridge no financiamento e planeamento das suas políticas públicas de saúde, optaram ao longo do tempo por criarem alterações substanciais das mesmas com uma autonomização progressiva das decisões e prestação de cuidados de saúde.
PROPOSTA DE RELFEXÃO SOBRE O NOSSO SNS
A saúde é o resultado da combinação das características de cada pessoa, do tipo e montante de cuidados de saúde que recebe e do tempo que é usado pela pessoa na “produção” da sua saúde.
No setor da saúde há elementos distintivos em comparação com outros setores que influenciam o bem-estar da comunidade: a existência de um forte juízo de valor sobre tudo o que se relaciona com a saúde, a presença dominante da incerteza e a existência de inúmeras externalidades.
A atual Lei de Bases da Saúde concentra todos os esforços de oferta de cuidados universais de saúde no SNS sendo que os setores privado e social deixam de ser complementares para assumirem um papel secundário supletivo, o que pode eventualmente condicionar os cuidados de saúde necessários à comunidade de acordo com o articulado na Constituição Portuguesa.
No atual modelo de organização institucional português, o Ministro da Saúde é a autoridade máxima do SNS, e sendo o Serviço Nacional de Saúde que contrata a
prestação de cuidados de saúde, poderemos inferir que necessariamente é a mesma entidade a definir o que compra e a definir por que preço compra. Se tivermos em linha de conta os outros sistemas de saúde referenciados para efeitos comparativos, verificamos que neles é tónica comum uma separação efetiva entre financiamento e prestação de cuidados e uma independência na regulação do funcionamento do sistema.
Atualmente em Portugal há uma gestão protecionista do SNS por parte do Ministério da Saúde não parecendo ser essa a ideia original do legislador que preconizou em 1979, com a aprovação da lei nº 56/79, de 15 de setembro, a criação do Serviço Nacional de Saúde. (16) A lei definia que, por um lado, competia ao governo a definição e coordenação global da política de saúde, ao passo que caberia à Administração Central de Saúde dirigir o SNS e superintender na execução das suas atividades.
Hoje em dia é ao Ministro da Saúde que incumbe a direção do SNS e, nos termos dos estatutos do SNS, assegura a tutela e superintendência sobre o Serviço Nacional de Saúde cabendo à ACSS e às ARS a gestão a nível de recursos financeiros e humanos. Na prática, a última palavra é sempre do Ministro da Saúde que se constitui como parte interessada na gestão do sistema na medida em que tem o poder efetivo da direção do SNS podendo ser, em última análise, responsável pelos resultados da sua gestão.
Na Inglaterra a gestão do SNS é assegurada por um comité que depende do Parlamento e que apenas a este responde, no quadro de uma gestão profissionalizada e autonomizada de todo o sistema. Na Dinamarca há uma delegação extensa de poderes numa entidade que gere, em conjunto com as 5 regiões e municípios, toda a operacionalidade do sistema de saúde. Estes 2 modelos de organização dos respetivos sistemas de saúde vão progressivamente assumindo a separação entre as funções de financiamento e a prestação de cuidados de saúde, o que se traduz nos modelos de contratualização adotados, quer ao nível dos cuidados primários de saúde, quer ao nível dos cuidados hospitalares. Estes modelos de contratualização asseguram o incentivo a modelos de gestão eficientes e que são participados quer por profissionais de saúde como pelos próprios utentes, o que aparenta a possibilidade de melhoria contínua e sustentada das suas políticas.
Em Portugal não há uma separação entre a conduta da política geral de saúde e a condução dos serviços operacionais do SNS que detêm o monopólio da proteção da saúde dos cidadãos. Assim assiste-se aparentemente a uma fragmentação da regulação das atividades em saúde, assim como a uma crescente diminuição de níveis de independência de atuação e por fim a uma ausência completa da avaliação do desempenho pelo valor acrescido das prestações e ganhos em saúde.
Tudo isto provoca condicionalismos fortes na prestação de serviços como se tornou aparente durante os meses de grave crise pandémica provocada pelo SARS COV 2 que obrigou a um relaxamento da autoridade central para que as unidades de saúde hospitalares e de cuidados primários pudessem ter a liberdade de adaptarem os seus serviços aos constrangimentos do momento. (17)
Mesmo no acesso e regulação de prestadores de cuidados de saúde no âmbito da Entidade Reguladora de Saúde, o seu grau de independência real é muito inferior aos modelos regulatórios da Inglaterra (NHS Improvement e Care Quality Commission) e da Dinamarca onde essas competências são do domínio das regiões de saúde.
Tendo em devida conta as inúmeras variáveis acima mencionadas é de inferir que uma alteração das políticas públicas de saúde privilegiando uma gestão flexível, proativa, profissionalizada e autónoma dos serviços de saúde poderá resultar num funcionamento mais otimizado do sistema de saúde português.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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