O Direito da Saúde, e tudo o que lhe subjaz, constitui hodiernamente uma temática crucial alvo de intensos debates nas sociedades contemporâneas.
Inicialmente, a Saúde foi vista como um bem de natureza meramente individual, cuja promoção não dizia respeito à comunidade política organizada, mas antes a cada pessoa de uma forma individual, no qual a relação médico/paciente se assumia com um papel de digna importância, garantindo um conjunto de direitos básicos da pessoa face à intervenção, potencialmente lesiva, do médico.
Mas, na verdade, adquiriu-se muito cedo a ideia do peso coletivo da saúde e da sua essencialidade para a preservação da vida da comunidade. Esta relevância foi evidenciada, em primeiro lugar, pelo resultado do caráter comunitário das epidemias e, posteriormente, pela exposição da ciência, que relacionou as condições de salubridade do espaço público, da higiene pessoal, da alimentação e da qualidade do ar e da água com a incidência de determinadas enfermidades. Contudo, nesta fase, a missão de prestar cuidados aos enfermos era tradicionalmente realizada por instituições de caráter religioso, imbuídas de um espírito assistencialista.
Mais tarde, assistiu-se à diluição dos laços de solidariedade característicos das populações rurais e ganharam relevo as necessidades de saúde de uma população crescente urbana, que chamou o Estado para a tarefa de organizar um sistema de cobertura de riscos, entre os quais o de doença. Este modelo, dos finais do século XIX, no governo do Chanceler Bismarck, tem por base a criação de seguros obrigatórios, cujo custo é dividido entre empregador e trabalhador.
No séc. XX, no período posterior à II Guerra Mundial, ocorre uma transformação radical do modo de perspetivar a relação entre saúde e o Estado, a qual surge marcada pela criação, na Europa, daquilo a que se convencionou chamar segundo Estorninho e Macieirinha (2014) “(…) Estado Social, providência ou de bem-estar” (p.11). No que concerne à saúde, o Estado além de assegurar a manutenção da ordem pública sanitária, passa a prestar, através de um serviço próprio de natureza pública, os cuidados de saúde necessários a toda a população. Este progresso é justificado pelo reconhecimento da saúde como um bem fundamental de todo o ser humano, indispensável à afirmação da sua dignidade, e de cuja responsabilidade a comunidade política não se pode afastar. A expressão deste movimento de afirmação da essencialidade da saúde foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 1948, na Assembleia Geral das Nações Unidas, a qual consagra, no seu artigo 25º, o direito de toda “a pessoa à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade”. Tratando-se de um instrumento de interpretação e de integração de direitos fundamentais do Homem, este apela sobretudo ao reconhecimento da dignidade como característica inerente à condição humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis, constituindo o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, considerando que é essencial a proteção dos direitos do Homem.
Apesar da criação recente da disciplina do Direito da Saúde, decorrente naturalmente da Declaração Universal dos Direitos do Homem, constata-se que a mesma não esteve ausente dos marcos históricos. Mas foi a evolução da ciência médica e os métodos de investigação que levantaram ao Direito e à Ética inquietantes dúvidas acerca dos limites da Medicina. Neste contexto, surge o Biodireito e a Bioética.
Por outro lado, o Estado, usufruindo dos seus poderes com vista ao desenvolvimento da saúde pública, afirmou-se através da formulação de um corpo de normas de Direito Administrativo, especificamente elaborado para o alcance do interesse público em matéria de saúde. Contudo, este Direito de Saúde Pública alargou o seu âmbito de intervenção, adicionando, ao seu domínio de intervenção dos clássicos regulamentos sanitários e das políticas de vacinação, outras áreas de interesse como o controle da produção de medicamentos e da segurança alimentar, ao consumo nocivo como o tabaco, o álcool e o teor de sal dos alimentos. O Estado assume a tarefa de prestação de cuidados de saúde aos cidadãos e o Direito Público da Saúde, refletindo uma nova dimensão. Não se fala só na promoção da Saúde Pública através da autoridade do Estado, mas também de promover a Saúde Individual de cada cidadão através da realização de prestações de natureza pública.
No âmbito da conceção do Direito da Saúde, o seu objetivo principal é a proteção e a promoção da saúde humana, desmembrando-se em três setores normativos: Direito da Medicina, Direito da Saúde Pública e Direito das Prestações de Saúde.
Perante estas conceções, como poderemos definir Direito da Saúde?
O Direito da Saúde é composto por um conjunto de normas de Direito Privado e Público, que tem como principal objeto a promoção da saúde humana, quer considerada na perspetiva da prestação de cuidados individuais, quer enquanto bem de uma comunidade, ou seja, a saúde pública (Serviço Nacional de Saúde, 2021). A este propósito, Estorninho e Macieirinha (2014) mencionam que “Direito da Saúde é o conjunto de regras e princípios que disciplina as relações jurídicas sanitárias ou de saúde.” (p.19).
Neste seguimento, importa destacar os traços essenciais que caracterizam esta recente disciplina: a sua Juventude, a Interdisciplinaridade, o Diálogo com a técnica e a Pluralidade das fontes.
A sua robustez é inspirada por algumas das mais principais fontes do Direito da Saúde ao nível Internacional. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada em 1948, é um instrumento de interpretação e de integração do sistema de direitos fundamentais. O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos defende, no seu artigo 7º, o direito de não sujeição a experiências médicas ou científicas sem consentimento e o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais descreve, no artigo 12º, o direito de todas as pessoas “de gozar do melhor estado de saúde física e mental possível”. A Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano, face às aplicações da Biologia e da Medicina, prevê um conjunto de preceitos fundamentais orientados à proteção da dignidade da pessoa humana em face das aplicações das mesmas. A Carta Social Europeia revista, do ano de 1996, assegura, no artigo 11º, igualmente o direito à proteção da saúde. A Convenção Europeia dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano, face às aplicações da Biologia e da Medicina, assim como as normas emanadas sob a forma de regulamento, pela OMS, representam instrumentos importantes do universo do Direito Internacional da Saúde. Acrescento que a OMS é a única organização internacional de vocação universalista, especialmente alinhavada para a prossecução de fins na área da saúde.
Ao nível das fontes de Direito da União Europeia, a matéria da saúde pública foi introduzida no seu leque de competências por altura da celebração do Tratado de Maastricht (artigo 152º), tendo sido posteriormente aprofundado pelos Tratados de Amesterdão, Nice e Lisboa. Para além do Tratado, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, cujo valor jurídico é igual ao do Tratado, contém disposição relativa à proteção da saúde.
Em relação aos normativos legais internos, no que diz respeito ao Direito da Saúde, considerados essenciais para a sua compreensão, a Constituição da República Portuguesa, aprovada em 1976, assume uma relevância abissal. Como lei suprema de um país, consagra os direitos fundamentais dos cidadãos, com princípios essenciais determinantes no estabelecimento de orientações políticas, estabelecendo condutas e regras de organização, assente no primado da dignidade da pessoa humana. A importância do artigo 1º, da Constituição da República Portuguesa, fundamenta: “é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada, na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”, sendo um dos princípios fundamentais, a dignidade humana enquanto condição do ser humano, que é reconhecido como um ser que é o fim em si mesmo e não como um simples meio ao serviço dos fins dos outros.
Importa destacar o artigo 12º da Constituição Portuguesa, Princípio da Universalidade, “todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição”, e o artigo 13º, Princípio da Igualdade, “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”.
O Direito à Saúde está explanado no extenso artigo 64º da Constituição da República Portuguesa onde refere que” todos os cidadãos têm direito à proteção da saúde e o dever de a proteger e salvaguardar”. Este direito identifica a obrigação de criação de um Serviço Nacional de Saúde universal, geral e tendencialmente gratuito (artigo 64º, nº2, a)), com gestão descentralizada e participada (artigo 64º, nº 4). Esclarecendo, o direito à proteção e à promoção da saúde é determinante para a igualdade de oportunidades. Todos os cidadãos devem dispor dos meios necessários para um desempenho aceitável, a nível físico e psicológico, de modo a poder beneficiar de conjunto de condições para alcançar mais fácil e plenamente a própria realização. O bem comum resulta do bem de todos nós, equiparando-se à justiça legal, ao direito de todos a participarem equitativamente. Relativamente à natureza pública, a Constituição descreve que o direito à proteção da saúde é concretizado através de um Serviço Nacional de Saúde, o que obriga à criação de um serviço organicamente público, hierarquizado e dependente funcionalmente do Estado. Apesar do referido, a lei prevê também o funcionamento de formas privadas de medicina em articulação com o Estado, fundamentando, no entanto, que é função do último a fiscalização e disciplinação das mesmas atividades.
Em 1979, após se terem reunido as condições políticas e sociais provenientes da reestruturação política portuguesa da década de 1970 e com a publicação da Lei n.º 56/79, de 15 de Setembro, assiste-se à criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS) que marca o nascimento do Sistema Nacional de Saúde, assegurando o acesso universal, compreensivo e gratuito a cuidados de saúde. Até esta altura, a assistência médica competia às famílias, instituições privadas e aos serviços médico-sociais da Previdência e ao Estado competia a assistência aos pobres. Desde este ano que o sistema de cuidados de saúde em Portugal tem sido então baseado na estrutura de um Serviço Nacional de Saúde, com seguro público, cobertura universal, acesso quase livre no ponto de utilização de serviços e de financiamento através de impostos.
A propósito do nascimento do SNS, saliento a principal base jurídica para todo o regime de saúde em Portugal e que integra uma densificação dos princípios enunciados no artigo 64 da Constituição – a Lei de Bases da Saúde. A 24 de Agosto de 1990, a lei de Bases da Saúde, Lei nº 48/90, descreve, pela primeira vez, a proteção da saúde perspetivada, não só como um direito, mas também como uma responsabilidade conjunta dos cidadãos, da sociedade e do Estado, em liberdade de procura e de prestação de cuidados.
Recentemente a Lei de Bases da Saúde foi de novo revista, Lei nº 95/2019, de 4 de setembro, e como principais alterações legislativas introduz:
- Reforço dos direitos dos refugiados e imigrantes ilegais em matéria de saúde, incluindo de forma explícita os requerentes de asilo e os migrantes sem situação legalizada na lista de beneficiários do SNS;
- Revisão do entendimento da lei anterior que previa a facilitação da mobilidade dos profissionais do SNS entre o setor público e o setor privado;
- Reafirmação de que os setores público, privado e social, atuam segundo um princípio de cooperação e pautam a sua atuação por regras de transparência e prevenção de conflitos de interesses;
- Diminuição, ao estritamente necessário, do recurso ao setor privado: no que toca às parcerias público-privadas no setor da saúde; no que toca a outros acordos de cooperação e convenções realizadas com instituições do setor social;
- Referência às novas tecnologias como “instrumentais à prestação de cuidados de saúde, sendo utilizadas numa abordagem integrada e centrada nas pessoas, com vista à melhoria da prestação de cuidados de saúde, à salvaguarda do acesso equitativo a serviços de saúde de qualidade e à gestão eficiente dos recursos.”;
- Referência aos Cuidadores Informais: “têm direito a ser apoiados nos termos da lei, que deve prever direitos e deveres, a capacitação, a formação e o descanso do cuidador.”
Esta nova Lei de Bases da Saúde enuncia, na Base XX, que o Serviço Nacional de Saúde pauta a sua atuação pelos seguintes princípios: universal, geral, tendencialmente gratuito nos cuidados, integração dos cuidados, equidade, qualidade, proximidade, sustentabilidade financeira e transparência, dos quais não tenho qualquer dúvida em eleger a universalidade como o mais importante e o que é verdadeiramente diferenciador em termos de valores civilizacionais: a garantia universal de acesso.
Em suma, o SNS é uma estrutura através da qual o Estado Português assegura o direito à saúde (promoção, prevenção e vigilância) a todos os cidadãos do seu país. O seu principal objetivo é o seguimento por parte do Estado, da responsabilidade que lhe cabe na proteção da saúde individual e coletiva, estando para tal dotado de cuidados integrados de saúde, nomeadamente na promoção e vigilância da saúde, na prevenção da doença, no diagnóstico e tratamento dos doentes e na reabilitação médica e social.
Desta forma, seria uma visão redutora perceber o Direito da Saúde se apenas fundamentado na Constituição da República Portuguesa. Mandatoriamente, o seu conhecimento profundo exige uma leitura integrada do sistema de direitos fundamentais. À luz da perspetiva do utente, existem direitos, liberdades e garantias que defendem os bens jurídicos das pessoas, sendo estes os pilares fundamentais do direito à vida, da integridade física e moral e de outros direitos que salvaguardam a autonomia da pessoa humana, como sejam o direito à identidade pessoal, à identidade genética, à liberdade, à objeção de consciência e à proteção dos dados pessoais.
Convergindo
fluências e vontades de todos os intervenientes, os Direitos da Saúde afiguram-se
como um imperativo ético, constitucional e democrático essenciais para manter a
defesa, consolidação e aperfeiçoamento do Serviço Nacional de Saúde.
– Referências Bibliográficas
- Carta dos Direitos Fundamentais da EU, 22 de julho de 2020. Web site: https://op.europa.eu/webpub/com/carta-dos-direitos-fundamentais/pt/
- Constituição da República Portuguesa, 7.ª Revisão Constitucional, Lei Constitucional n.º 1/2005 de 12 de Agosto. Web site: https://www.parlamento.pt/ArquivoDocumentacao/Documents/CRPVIIrevisao.pdf
- Carta Social Europeia 1996. Web site: https://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/instrumentos/carta_social_europeia_revista.pdf
- Declaração Universal dos Direitos do Homem 1948. Web site: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos
- Estorninho, M., Macieirinha, T. (2014). Direito da Saúde. Lisboa. Universidade Católica Editora.
- Lei de Bases da Saúde: Lei nº 95/2019, de 4 de setembro. Web site: https://files.dre.pt/1s/2019/09/16900/0005500066.pdf
- Serviço Nacional de Saúde: Lei nº 56/79 de 15 setembro. Web site: https://files.diariodarepublica.pt/1s/1979/09/21400/23572363.pdf
- Serviço Nacional de Saúde. Direito da Saúde. Web site: http://www.spms.min-saude.pt/direito-da-saude/
- Tratado de Maastricht. Web site: https://europa.eu/european-union/sites/europaeu/files/docs/body/treaty_on_european_union_pt.pdf