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Unidades Locais de Saúde: A perceção e a realidade de um modelo organizacional

Artigo da autoria de *João Ricardo Miranda da Cruz; ** Maria Helena Pimentel, *** Susana Rodríguez Escanciano, **** Ana Belén Casares Marcos

A integração de cuidados de saúde reside essencialmente no pressuposto de que uma prestação com melhores níveis de integração de cuidados permitirá alcançar melhores níveis de desempenho por parte das organizações e sistemas de saúde. Neste artigo, através da realização de entrevistas estruturadas aos elementos que constituem os conselhos de administração das ULS em estudo, pretendeu-se analisar o modelo organizacional das ULS, relativamente a 8 dimensões: modelo organizacional das ULS e impactos da sua dinâmica de gestão; modelo de financiamento; sistemas de informação; gestão dos recursos   humanos e materiais; dinâmica gestão/integração/interligação aos vários níveis de prestadores de cuidados; integração dos intervenientes locais (municípios e redes sociais); criação/transferência de conhecimentos; as ULS constituem um modelo de futuro.

INTRODUÇÃO

Dada a atual pressão sobre os custos dos sistemas de saúde, a articulação entre as diferentes organizações prestadoras de cuidados de saúde ganha importância e, para conseguir dar respostas adequadas aos novos padrões de procura, exige-se aos sistemas de saúde atuais uma maior descentralização, partilha de responsabilidades e uma melhoria nos níveis de serviço, o que nos remete para a discussão em torno da integração de cuidados de saúde. A mudança de uma atuação centrada no tratamento da doença para um novo paradigma focado no bem-estar geral do utente é urgente e a oferta de cuidados de saúde centrada na figura do hospital deverá dar lugar a políticas de saúde mais focadas na promoção da saúde e prevenção da doença, o que obrigará necessariamente a mais e melhor coordenação entre os vários níveis de cuidados de saúde (Santana & Costa, 2008).

A integração de cuidados de saúde visa alcançar maior acesso aos serviços de saúde, elevar os padrões de qualidade na prestação de cuidados, utilizar melhor a capacidade instalada, aumentar a satisfação dos utentes e obter ganhos em saúde e em eficiência. As experiências de integração de cuidados de saúde, particularmente de cuidados de saúde primários (CSP) e hospitalares, começaram a surgir em Portugal, em 1999, com a criação da primeira unidade local de saúde (ULS) em Matosinhos-Porto e gradualmente mais ULS foram criadas, perfazendo hoje um total de 8 unidades locais de saúde dispersas pelo país. Contudo, pouco conhece acerca desses modelos. Exige-se, por isso, um conhecimento mais profundo destes modelos de gestão dos cuidados de saúde, determinante para a sua avaliação e possível expansão. Em Portugal, no decorrer do tempo, outros modelos foram adotados e dos quais se abdicou, em muitos casos sem avaliação para um diagnóstico adequado dos seus contributos e limitações (Lopes et al., 2014).

Kodner & Kyriacou (2000) define a integração de cuidados como um conjunto de técnicas e modelos organizacionais desenhados para criar colaboração, coordenação e cooperação dentro e entre os prestadores, em termos curativos e de cuidados, tanto na área financeira como administrativa.

Deste modo, a integração entre Cuidados de Saúde Primários e Cuidados de Saúde Hospitalares é considerada como a estratégia para melhorar o acesso, a adequação, a qualidade técnica, a continuidade e a efetividade dos cuidados de saúde prestados à população (Nunes et al., 2012). O conjunto de fenómenos demográfico-sociais e científicos  (alterações como o envelhecimento da população, a mudança epidemiológica, a evolução do perfil dos consumidores, os avanços científicos no tratamento da doença, o nível da rapidez na disponibilização de informação e na partilha de conhecimento, a exigência do nível de qualidade assistencial), que exige uma adaptação da resposta fornecida pelas organizações de Saúde tem sido, o principal influenciador da Integração Vertical (Lopes et al., 2014).

As ULS constituem, assim, a integração de cuidados de natureza vertical numa única entidade e sob a alçada de uma mesma gestão diferentes níveis de cuidados com vista a aumentar o acesso aos serviços de saúde, sobretudo os de proximidade, melhorar os padrões de qualidade, otimizar a capacidade instalada, promover a satisfação dos utentes e almejar ganhos económicos e ganhos em   saúde. Neste artigo procura-se analisar o modelo organizacional das ULS e os ganhos em saúde decorrentes da integração dos diferentes níveis de cuidados, compreender os processos de integração de cuidados de saúde e fatores envolvidos e analisar a integração de cuidados de saúde em Portugal, de acordo com a opinião dos entrevistados.

MÉTODO

As ULS que integram o estudo são 5 das 8 ao nível do território Português (ULS Alto Minho, ULS Matosinhos, ULS Guarda, ULS Castelo Branco e ULS Nordeste) de matrizes distintas tanto sociodemográficas como geográficas.

Amostras muito específicas requerem informantes com caraterísticas muito homogéneas, o que pode conduzir a amostras de menor dimensão. Como resultado, essa homogeneidade pode dar acesso a informação interessante de forma concentrada (Rego, Cunha & Meyer, 2018).

Procedeu-se por isso à realização de entrevistas estruturadas com informadores privilegiados, entre os elementos que constituem os conselhos de administração das ULS em estudo: presidentes dos conselhos de administração (4), vogal do conselho de administração (1), diretora clínica para a área hospitalar (1), diretora clínica param a área dos cuidados de saúde primários (1) e diretor de enfermagem (1).

O guião da entrevista foi estruturado por 8 dimensões: dimensão I – modelo organizacional das ULS e impactos da sua dinâmica de gestão; dimensão II – modelo de financiamento; dimensão III – sistemas de informação; dimensão IV – gestão dos recursos  humanos e materiais; dimensão V – dinâmica gestão/integração/interligação aos vários níveis de prestadores de cuidados; dimensão VI – integração dos intervenientes locais (municípios e redes sociais); dimensão VII – criação/transferência de conhecimentos; dimensão VIII – as ULS constituem um modelo de futuro.

RESULTADOS

Foram colocadas 8 questões aos entrevistados, visando aferir ideias marcantes no domínio da perceção e realidade deste modelo organizacional – ULS.

As várias respostas foram analisadas com recurso à análise de conteúdo e agrupadas de acordo com as dimensões precedentemente estruturados. Em seguida resumem-se os principais resultados que contribuem para dar resposta aos objetivos previamente delineados deste estudo.

Dimensão I: modelo organizacional das ULS e impactos da sua dinâmica de gestão

Todos os entrevistados são unânimes em defender que este modelo organizacional aporta claras vantagens, divergindo apenas na enumeração das mesmas, bem como na sua hierarquização. Duas vantagens destacam-se em relação às demais, primeira: o facto de o órgão de gestão ser único; segunda, e mais focada pelos entrevistados, a integração de cuidados, resultante de uma única estrutura que agrega pelo menos, dois níveis de cuidados, os cuidados de saúde primários e os cuidados hospitalares. Contudo é de salientar que estas 2 vantagens, para todos os entrevistados, a de um órgão de gestão de topo único e a integração e interligação de cuidados são realidades concomitantes, ou seja, uma conduz inevitavelmente à outra. Mas se a integração de cuidados se apresenta como um dos maiores benefícios deste modelo organizativo, um dos entrevistados reforça que almejar este princípio na prática diária é algo mais complexo, difícil de atingir, mas possível. Um outro entrevistado aventa que a integração dos cuidados se produziu, mas as alterações a nível legislativo que era necessário realizar a cada um dos níveis de cuidados, nomeadamente dos cuidados de saúde primários não acompanhou este processo, ou seja, os cuidados de saúde primários continuam a deter a mesma filosofia dos cuidados de saúde primários do resto do país.

Dimensão II: modelo de financiamento

Este modelo de financiamento é referido por 25% dos entrevistados, como um modelo de financiamento per capita que integra além do número de habitantes, variáveis como o status socio económico e a escolaridade, em que estas variáveis muito mais    altas desvalorizam o valor per capita, no princípio de que as pessoas mais instruídas precisassem menos de cuidados de saúde. Muitas das 5 ULS em estudo, 3 concretamente, situam-se no interior do país, e tal como referem 60% dos entrevistados, não há critérios de reforço nomeadamente nas despesas de contexto, porque é completamente diferente uma ULS no litoral do país, ou os custos resultantes de se situar no interior, com baixa densidade populacional associada a uma significativa dispersão geográfica. Temos, portanto, para a totalidade dos entrevistados, uma questão clara e inequívoca de subfinanciamento relevante. Salientando os modelos de produção, 50% dos entrevistados, chamam a atenção para a ausência de incentivos à produção, ou seja, o modelo mais adequado seria aquele que tivesse uma base per capita e uma componente de produção hospitalar, podendo ter associado como ganho a motivação por parte dos profissionais em cumprir os objetivos, aliciando-os com incentivos.

Mas 25% dos entrevistados defendem que o modelo deveria ser o de criação de valor, o que tem resultados efetivos para as pessoas, monitorizado por indicadores de saúde de morbilidade e de longevidade, diminuindo bastante a mortalidade evitável, antes dos 60 anos, por exemplo. Produzir o que não cria um valor acrescido para a pessoa, nem no presente, nem no futuro, é altamente questionável.

Dimensão III: sistemas de informação

Os sistemas de informação constituem uma das principais áreas fomentadas pela criação das ULS, uma das chaves deste processo. Esta perceção é unânime. Os sistemas de informação estão a ser amplamente usados no apoio à saúde da população e nas atividades decorrentes do trabalho produzido pelos profissionais, estando intimamente relacionados com a prevenção e promoção de saúde, controle de doenças, vigilância e monitorização do estado de saúde das populações que se servem. Para 60% dos entrevistados o foco tem de passar indubitavelmente pelo processo clínico eletrónico único. A criatividade local para explorar ou maximizar as mais-valias deste modelo integrativo pode gerar um benefício macro que vai além da sua ULS per si. Assim o sistema, potencializado pela integração dos vários níveis de cuidados, pode coadjuvar o profissional de saúde para a realização do seu trabalho, com incremento na qualidade dos seus cuidados, por via de uma monitorização e de uma informação mais atualizado dos doentes que estão sob a sua responsabilidade.

Dimensão IV: gestão dos recursos humanos e materiais

A totalidade dos entrevistados salientam o enorme desafio que consubstancia a gestão dos recursos humanos numa ULS, justamente pelo repto de interligar dos profissionais dos vários níveis de cuidados na prossecução de um objetivo, de uma meta comum, pois há sempre, por vezes latente, em outros momentos mais premente, o sentimento nos profissionais, de não se sentirem totalmente imbuídos de uma unidade de saúde com um modelo de integração vertical dos cuidados, com uma matriz organizativa de interligação. 60% dos entrevistados focam também o pendor na questão da autonomia financeira, mais concretamente no recrutar de profissionais de saúde. Portanto sem autonomia é muito difícil gerir recursos humanos, sem capacidade financeira para os poder recrutar também é difícil. Sem também possuir uma autonomia para uma política de incentivos torna-se difícil abordar com mais proficiência a gestão de recursos humanos.

Dimensão V: dinâmica gestão/integração/interligação aos vários níveis de prestadores de cuidados

72% dos entrevistados relativamente à dimensão de integração e interligação dos vários níveis de prestadores de cuidados, definem objetivamente a existência de uma barreira invisível entre os diferentes níveis de cuidados, pese embora, tenha de ser lentamente destruída. Objetivam os mesmos entrevistados que essas barreiras residem essencialmente nos próprios profissionais. É necessária uma cultura de sistema que toda a gente diga a mesma coisa. Esta interação ainda não existe e é evidente na perceção manifestada pelos 8 entrevistados, sendo necessário cultivá-la. As políticas do conselho de administração têm de ser integradoras, pretendendo-se que sejam extensíveis a todas as unidades fomentando a coesão e a unidade.

Dimensão VI: integração dos intervenientes locais (municípios e redes sociais)

72% dos inquiridos expõem certezas acerca das mais-valias geradas pela presença de um vogal no conselho de administração nomeado pelas Comunidades Intermunicipais (CIM) e que é o elo de articulação funcional. Contudo 37% dos entrevistados salientam que não exclui a comunicação estreita e permanente entre o presidente do CA e os vários presidentes de câmara do distrito que pertence a ULS. Um entrevistado não responde com convicção plena face à mais-valia da integração de um vogal designado pelas áreas metropolitanas pelo conjunto de municípios. Suporta esta afirmação em vários domínios, desde o currículo às características pessoais, que são determinantes para poder aportar know-how e benefícios, independentemente da questão da sua nomeação pela CIM e efetiva representação da mesma no CA.

Dimensão VII: criação/transferência de conhecimentos

O modelo de ULS é facilitador, mas não é determinante é a opinião transversal aos 8 entrevistados em relação ao potencial de criação de conhecimento neste modelo de integração vertical de cuidados que concretizam as ULS.

Há um entrevistado que deixa patente que quando a ULS esteja a funcionar com outro nível de performance, será uma área que vai ser muito beneficiada, ou seja ainda há um enorme potencial no domínio da produção do conhecimento e da investigação no que diz respeitante às ULS, primeiro endogenamente, por meio da consolidação do seu modelo organizativo, posteriormente o melhorar e desenvolver a articulação com os centros de investigação, mais propriamente o ensino superior e as empresas.

Dimensão VIII: as ULS constituem um modelo de futuro

100% dos entrevistados são concomitantes nas suas observações e respostas face à questão se as ULS se revestem como um modelo que perspetiva o futuro. Afirmam que são um modelo de futuro para algumas áreas, embora não são aplicáveis a todo o país por vários motivos. Aduzem que são necessárias outras estratégias e políticas para desenvolver e tornar as ULS um modelo com capacidade de resistir, renovar-se e vitalizar-se no tempo. Constituem-se como um modelo com mais-valias sem dúvida, mas é crucial maior financiamento e outro modelo de calculo desse mesmo financiamento, maior autonomia e legislação própria enquadrada com este modelo organizativo.

CONCLUSÃO

Das vantagens óbvias deste modelo de integração, conclui-se que são a unificação dos órgãos de gestão dos vários níveis de cuidados e a integração vertical desses mesmos níveis, revertendo essa mais-valia a nível funcional direto e de estrutura. Aporta logo vantagens no domínio económico, mas também um conhecimento que se pode denominar por eclético, um conhecimento global de toda a população do distrito que serve. Contudo salienta-se, que não são só vantagens, de destacar apontado por todos os entrevistados o problema que se prende com a articulação funcional. Conclui-se também que a economia de escala, constitui-se como maior ganho na integração vertical de cuidados. No que concerne ao modelo de financiamento conclui-se, indubitavelmente, que está longe de ser o adequado, por manifesto subfinanciamento, em que nalgumas ULS é ainda exacerbado pelas variáveis de contexto, como a dispersão geográfica, por exemplo. Pode também concluir-se que os sistemas de informação numa perspetiva de partilha pelos vários níveis de integração da prestação de cuidados, foi a área em que mais se desenvolveu, embora não tão desejável como o expetável. Outra conclusão que se deduz é a mais-valia evidente que a integração dos intervenientes locais (municípios e redes sociais do concelho), constitui significativa importância a inclusão de um vogal que representa os municípios no  CA. Visando dar maior empoderamento ao utente/doente no que respeita à gestão da sua saúde/doença, conclui-se que este é o modelo que serve de base concretamente para incrementar esse propósito, porque este modelo é aquele  que permite, sem ínfima dúvida, ter o doente no centro do sistema.

Em relação à dinâmica gestão/integração/interligação dos vários níveis de prestadores de cuidados, apurou-se a dificuldade de operacionalizar essa gestão, essa interligação, redundando muitas das dificuldades nos entraves protagonizados pelos próprios profissionais que constituem as ULS, de simples atos administrativos, até ao sentimento de pertença apenas à unidade em que trabalha e não um sentimento com uma perspetiva macro, ou seja, sentir-se um profissional que desempenha funções numa entidade que aglutina várias unidades.

As ULS constituem-se como um modelo organizativo e administrativo com perspetivas de se consolidarem, embora haja relutância que se ampara no que os vários intervenientes que gizam e determinam o seu futuro, exemplo Ministério da Saúde, ambicionem na definição deste modelo de governação em saúde.

*  Doutor em Ciências da Saúde, Professor Assistente Convidado na Escola Superior de Saúde de Bragança – Instituto Politécnico de Bragança, Bragança, Portugal [j_r_cruz@sapo.pt]. Morada para correspondência: Avenida das Forças Armadas, nº 12, 5º Esq., 5300-440, Bragança, Portugal.

** Professora Coordenadora, Instituto Politécnico de Bragança, Campus de Santa Apolónia – 5300-253 Bragança. Unidade de Investigação em Ciências da Saúde: Enfermagem (UICISA: E), Escola Superior de Saúde de Bragança.

*** Professora Catedrática de Direito do Trabalho e da Segurança Social, Universidade de León, Faculdade de Direito, Campus de Vergazana, s/n. 24071 – Leon, Espanha.

**** Professora titular de Direito Administrativo, Universidade de León, Faculdade de Direito, Campus de Vergazana, s/n. 24071 – Leon, Espanha.

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