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O Sistema Português de Saúde pós COVID-19 Da resiliência às novas oportunidades – artigo da autoria de José Miguel Boquinhas

Se dúvidas houvesse acerca da qualidade e capacidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS), elas teriam sido dissipadas pela resposta que foi dada, quer através da capacidade instalada, quer da que se conseguiu instalar em tão pouco tempo, quer ainda da resposta dada pelos seus profissionais, que têm demonstrado uma solidariedade e resiliência que são um motivo de orgulho para o nosso país. Já sabíamos que assim era, não só pela vivência diária de quem com eles trabalha, mas até pelos elogios que com alguma frequência vêm de fora, sobretudo, provenientes do Reino Unido, em relação aos nossos médicos e enfermeiros.
O SNS não deve ser visto apenas como a mais eficaz resposta em momentos desta natureza relacionados com graves crises de saúde pública, mas em situações de normalidade na prestação de cuidados de saúde. Ele representa um eficaz instrumento de combate às desigualdades sociais, devido às suas características de universalidade e de equidade no acesso, cuidando do rico e do pobre com a mesma dedicação, e à sua qualidade assistencial, características que devem estar sempre presentes nos modernos sistemas de saúde.
A comparação com outros países, muitos deles bastante mais ricos que Portugal, não pode deixar de ser feita, até para prevenir ataques que contra ele advirão após o regresso à normalidade, quando já a memória se tornar uma nebulosa e regressarem os falaciosos argumentos do costume acerca da sua alegada ineficiência ou qualidade.
Se olharmos para o que de nós dizem lá fora e para os números que raramente mentem, constatamos, por exemplo, que Portugal é visto pela OMS como “estando na dianteira da implementação de medidas, «notáveis» e «corajosas», que promovem um modo de vida mais saudável, acrescentando ainda, que «Portugal tem um dos poucos bons sistemas de saúde do mundo» (2018), ou o que refere o Health Systems in Transition que num estudo recente refere que “ o sistema de saúde português é dos mais eficientes da Europa, pela melhoria da esperança de vida e da contenção da despesa total, sobretudo, pela restrição de preços e custos”. A IBT- International Business Time – uma revista norte- americana, coloca Portugal entre os cinco melhores países do mundo na prestação de cuidados de saúde, salientando, entre outros, a prevenção e a erradicação de doenças e o programa de vacinação, e o Euro Health Consumer Index refere Portugal, em 2018, como sendo o 13º melhor entre 35 países estudados por esta organização, do ponto de vista da perceção da qualidade por parte dos utilizadores.
A atual evolução da pandemia em Portugal e a capacidade de resposta do SNS, parecem confirmar os bons resultados conseguidos pelo nosso sistema de saúde, pese embora alguns problemas nos últimos anos, fruto das dificuldades sentidas com a crise financeira que atingiu o nosso país a partir de 2010, com evidente subfinanciamento e carências em equipamentos e recursos humanos.
Durante a presente pandemia os números, de uma forma geral, têm sido também nossos amigos, se compararmos com países como a Itália, Espanha, França, Suíça, Reino Unido, Bélgica, Holanda ou mesmo a Suécia, países muito mais ricos que o nosso, sendo certo que outros como a Áustria, República Checa, Noruega ou Dinamarca têm feito tão bem ou melhor que nós. Naturalmente, que estes resultados não têm só a ver com a qualidade do SNS mas com outras razões, desde a rapidez e tipo de respostas dadas, como o distanciamento social, o confinamento precoce e a disciplina demonstrada pelos portugueses em seguir as orientações das autoridades sanitárias, até à resiliência, competência e solidariedade demonstradas pelos profissionais de saúde na linha da frente correndo enormes riscos, alguns pagando com a vida a sua dedicação aos doentes.
A crise de saúde pública provocada pelo COVID-19, para além das mortes que está a provocar, irá ter consequências a curto e médio prazo, quer na saúde dos portugueses, quer no nosso tecido social e económico. Sobre a saúde dos portugueses são já nítidos os problemas relacionados com o isolamento, sobretudo, na saúde mental, nuns casos provocando novos problemas, noutros agravando alguns previamente existentes. A estes problemas juntam-se as questões relacionadas com o possível agravamento do número de casos de violência doméstica devido à permanente persistência do contacto do agressor com a vítima em ambiente de ansiedade e tensão.
De uma forma geral, é já conhecido o adiamento do recurso ao SNS por parte dos doentes com patologias crónicas necessitando de um seguimento permanente, como sejam o caso dos diabéticos, hipertensos, doentes cardíacos, renais ou pulmonares. E, se nalguns casos, as consultas sem presença do doente através de contacto telefónico têm ajudado a mitigar o problema, nem sempre essas situações se conseguem resolver sem o recurso a exames auxiliares de diagnóstico, muitas vezes também mais demorados ou adiados.
Nas especialidades cirúrgicas e, em certa medida, na oncologia, também tem sido referido um aumento das listas de espera para além dos tempos considerados clinicamente recomendados para o diagnóstico e tratamento dos doentes, o que obrigará a um esforço redobrado dos serviços de saúde e dos seus profissionais para as reduzir, implicando um aumento inevitável da despesa em saúde nos próximos tempos até ao regresso à normalidade. É até possível, que os setores privado e social sejam chamados a ajudar a reduzir as listas de espera cirúrgicas, caso o SNS demore demasiado tempo a recuperá-las.
Todos estes atrasos se devem, em parte, à concentração dos esforços dos
médicos e profissionais de saúde na resolução da pandemia, situação, aliás, objeto de orientações nesse sentido por parte do Ministério da Saúde.
Acresce o facto de muitos doentes terem receio de se dirigir aos hospitais, quer para consultas, quer para exames de rotina, quer ainda, adiando a ida a serviços de urgência, situação que agrava mais o problema, contribuindo para mortes evitáveis, cuja dimensão ainda está por esclarecer.
De tudo isto resulta que, a curto e médio prazo poder-se-á assistir a um aumento da morbilidade e mortalidade nalgumas patologias, sobretudo crónicas, mas também num crescimento de mortes por doenças agudas, devido ao atraso na marcação de primeiras consultas e cirurgias, e no receio do recurso aos serviços de urgência.
Parece já evidente a transformação do SNS provocado pelo COVID-19; por
um lado, levando a novos investimentos irreversíveis no SNS de que tanto estava carenciado e, em particular, na área dos cuidados intensivos com aumento do números de camas, ventiladores e formação de mais intensivistas, o que é das poucas consequências positivas desta pandemia, por outro lado, tornando evidente a necessidade de mais investigadores dedicados ao estudo dos vírus e mesmo de médicos virologistas, o que foi já assinalado pelo Ministério da Ciência Tecnologia e Ensino Superior.
De uma forma muito interessante e que se poderá prolongar no tempo, prova-se que quando o Estado e os profissionais querem, muitas questões burocráticas de difícil solução parecem como que milagrosamente fáceis de resolver. E esta pode também ser mais uma consequência da crise viral, ao demonstrar a necessidade de desburocratizar certos procedimentos dando mais autonomia aos hospitais e centros de saúde.
Pode ser, tenho essa esperança, que muitas das barreiras burocráticas que têm condicionado alguns aspetos do funcionamento do SNS e que foram ultrapassadas durante a crise, possam vir a ser suprimidas de vez.
Em relação aos modelos de atendimento no SNS, parece evidente a importância que ganhou a linha de Saúde 24 que esperamos possa vir a ser cada vez mais conhecida e utilizada pelos portugueses, de modo a poder contribuir como um modelo alternativo de resposta aos utentes do SNS, se possível com outro desenvolvimento, para ajudar a reduzir a sobrecarga aos serviços de urgência, para além de outras funções que possam vir a ser estudadas.
Mas também haverá diversas outras consequências no modelo de organização de trabalho dos médicos, questão que tenho vindo a chamar a atenção em diversas ocasiões de intervenção pública, e para a qual não tem havido a suficiente coragem política para ser abordada de uma forma holística. Esta é uma oportunidade única para se repensar modelos alternativos de trabalho médico, desde um aumento do número de consultas por telemedicina ou simplesmente por contacto telefónico nas situações de doenças crónicas em que o doente é bastante conhecido do médico, até novas formas de distribuição das cargas horárias pelas diversas valências dos serviços de uma forma mais racional de modo a reduzir horas mortas e aumentando a eficiência, até ao trabalho com cumprimento de objetivos bem definidos através de indicadores de qualidade assistencial e de eficiência. Tudo isto completado com salários com uma componente fixa e outra variável ligada aos referidos objetivos, à semelhança do que existe nos cuidados primários. De tudo isto se fala há anos, mas poucos têm sido os avanços nesta matéria.
Mas esta crise pandémica, também poderá ser uma oportunidade para o
desenvolvimento de outras competências nacionais e na recuperação definitiva do SNS que tem tido um subfinanciamento crónico desde os anos da crise, sendo certo que este subfinanciamento não é original, porque se recuarmos no tempo, têm sido mais as vezes em que isso acontece que o inverso. No entanto, existe algum risco de logo a seguir à crise, haver a tentação de reduzir de novo o orçamento da saúde face ao seu impacto sobre as finanças públicas. Esperemos que isso não aconteça e, pelo contrário, assumamos de vez que um SNS forte e bem financiado não só trata melhor os portugueses, como ajuda a economia do país ao manter uma força de trabalho saudável e operacional. Num estudo recente da Universidade Nova (Índice Anual de Saúde Sustentável) calcula- se um impacto positivo do SNS no absentismo e na produtividade laboral de cerca de 5 mil milhões de euros em termos de retorno para a economia.
Das diversas competências que podem emergir da crise pandémica, saliento as relacionadas com a indústria que foi chamada a resolver diversos problemas relacionados com os testes de diagnóstico, material de proteção e ventiladores.
Desde há alguns anos, que se tem vindo a trabalhar no sentido das exportações em saúde poderem vir a ter um impacto mais significativo no total das exportações do que atualmente detêm. A verdade é que o êxito do crescimento das exportações em saúde em anos recentes tem sido conseguido, no essencial, à custa dos produtos farmacêuticos, quer produtos farmacêuticos de base, quer, sobretudo, preparações farmacêuticas. Se olharmos para as exportações portuguesas em saúde, elas representavam em 2008 um total de 627 milhões de euros dos quais 473 milhões se referiam a produtos farmacêuticos. Em 2019 este valor ultrapassou os 1500 milhões, representando um aumento de 14,5% em
relação a 2018, e mais de 1100 milhões em produtos farmacêuticos. Apesar deste crescimento muito consistente, nota-se um valor ainda muito baixo em relação a outros produtos de saúde como sejam os instrumentos e material médico-cirúrgico, cerca de 300 milhões, e os equipamentos de radiação e electromedicina, cerca de 15 milhões. Não se inclui nestes números exportações ligadas a e-health ou a componentes plásticos incorporados em dispositivos médicos.
Olhando para estes valores, percebe-se que existe aqui uma margem enorme de progressão no que diz respeito ao desenvolvimento da indústria nacional nesta área dos equipamentos e instrumentos médico- cirúrgicos. E é aqui que entra a possibilidade da indústria portuguesa se dedicar mais ao fabrico e exportação destes produtos, aproveitando as oportunidades surgidas com a pandemia, apoiada pelos diversos centros de conhecimento e I&D existentes no nosso país ligados às universidades e hospitais, acarinhada e estimulada pelo Estado, e apoiada pela banca.

Segundo o Health Cluster Portugal que agrega mais de 160 empresas ligadas à saúde e que assinou recentemente antes desta crise provocada pelo COVID-19 um pacto para a competitividade e internacionalização com o Ministério da Economia, o total das exportações em saúde poderá atingir os 2,5 mil milhões de euros em 2025. No entanto, fruto das oportunidades criadas pela crise de saúde pública, é natural que aquele número possa vir a ser ultrapassado.
Um dado importante revelador da dinâmica que se está a criar na área da saúde segundo o European Patent Index Report, em 2019 houve um aumento de 57,7% no número de pedidos de patente com origem portuguesa face a 2018, contribuindo para este aumento o crescimento de 83,3% na área das tecnologias médicas e de 35,7% na área dos produtos farmacêuticos.
Para além do tipo de produtos que têm vindo a ser desenvolvidos no âmbito da pandemia, a indústria portuguesa tem espaço suficiente para produzir equipamentos médicos e cirúrgicos, equipamentos de electromedicina de pequena e média dimensão, mobiliário hospitalar diverso e software para aplicações em e-saúde, onde já temos uma larga experiência, quer no sector público, quer no privado.
Esta crise veio revelar a resiliência e qualidade dos nossos serviços de saúde, o que pode ser um importante fator de competitividade para o turismo, ao criar uma sensação de segurança acrescida aos turistas que queiram visitar-nos, tendo em conta, até, a comparação com a Espanha e Itália aqui tão perto e grandes concorrentes de Portugal no setor turístico.

Esse facto, só por si, pode levar a um crescimento do número de turistas pós crise, pelo menos, no imediato, ao tornarem o nosso país numa alternativa mais segura àqueles nossos concorrentes diretos. No caso particular do turismo de saúde, este sentimento de segurança e qualidade dos serviços de saúde em Portugal, pode criar uma excelente oportunidade que deve ser incentivada pelo governo e regiões de turismo, e explorada pelos operadores turísticos, hotéis com spa/wellness, alojamentos locais, termas e unidades de saúde, no sentido do
desenvolvimento do turismo de saúde, quer na vertente de saúde e bem-estar, quer na vertente do turismo médico. Os próximos tempos são de grandes desafios para o SNS. Provavelmente assistiremos, até que a população esteja imunizada através de uma vacina em larga escala, a um SNS a duas velocidades; uma com preocupações relacionadas em manter uma boa resposta aos cuidados de saúde relacionados com o COVID-19, por se esperarem novas ondas epidémicas no país, outra com a preocupação de aumentar a capacidade de resposta em todas as patologias onde exista um aumento das listas de espera para lá dos tempos clinicamente aceitáveis. Mas, também, grandes desafios em explorar novos modelos de organização do trabalho médico, com o desenvolvimento de modelos de consultas à distância, maior utilização da linha saúde 24 por parte da população e apoio da indústria da saúde ao SNS através da construção de equipamentos médico-cirúrgicos que poderão também vir a reduzir o peso das importações nesta área, tornando o custo de aquisição desses equipamento feitos em Portugal mais baratos.
É bom não esquecer a importância que o sector da saúde tem para o país, com perto de 90 mil empresas que faturam, por ano, cerca de 30 mil milhões de euros, geram um valor acrescentado bruto de 9 mil milhões e dão emprego a quase 300 mil pessoas.
Por último, o aumento da pobreza provocada pelo desemprego e pela falência de pequenas e médias empresas, obrigará o governo a manter uma dotação orçamental robusta ao SNS, para que os mais pobres e desfavorecidos não venham a sofrer ainda mais com os efeitos da pandemia, por não terem capacidade financeira para procurarem respostas alternativas ao SNS no sector privado.


José Miguel Boquinhas
Médico

1 Comment

  1. Alexandra Carvalhal

    Excelente análise mas peca por não mencionar o que está pandemia revelou, à força: o papel relevante e essencial da enfermagem, tanto na prestação como na gestão de cuidados. Seria já tempo de deixar para trás este sistema de saúde medicocentrico. Está é a oportunidade

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