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Comunicação do governo durante a crise pandémica: o que correu bem e o que correu mal

Artigo da autoria de Paulo Simões, MD, PhD Global Management, Professor convidado – Mestrado Executivo de Gestão de Serviços de Saúde, ISCTE

Quando no início de janeiro de 2020 o mundo tomou conhecimento de um surto por um novo tipo de vírus (SARS-CoV-2) em Wuhan, poucos poderiam prever o que iria acontecer a nível mundial. Talvez alguns já tivessem pensado no assunto e até alertado a comunidade internacional sobre os riscos de um fenómeno semelhante. Basta pensar no filme “Contagion” de Steven Soderbergh, de setembro de 2011, ou na comunicação de Bill Gates na TED, de 3 de abril de 2015[i], para percebermos que a análise de risco de situações semelhantes teria já ocorrido um pouco por todo o lado, sobretudo depois das crises da gripe A e do Ébola.

No dia 15 de janeiro de 2020, para o cidadão comum deste lado do mundo (Europa), a situação era longínqua e em Portugal, o responsável máximo de uma agência governamental referia, após uma reunião com peritos no Infarmed, que “já se sabe o genoma deste vírus, está circunscrito à cidade chinesa onde ocorreu, há uma fraquíssima possibilidade de ele se transmitir de uma pessoa para outra, mas isso é apenas uma fraquíssima possibilidade por isso a propagação e eventual propagação não é uma hipótese neste momento a ser equacionada[ii]” desvalorizando o problema e remetendo a situação para o outro lado do mundo.

Como se sabe, o problema afinal era global e em março de 2020 a OMS declarava o estado de pandemia[iii], obrigando o governo a ponderar a declaração do estado de emergência. A questão, em março de 2020, era o efeito da pandemia na comunidade e no Serviço Nacional de Saúde versus o efeito na economia e nas finanças do país. A discussão, mais uma vez no Infarmed, feita no âmbito de uma comissão nomeada pelo governo denominada “Conselho Nacional de Saúde Pública”, defendia que não se justificava o encerramento das escolas e outros equipamentos culturais[iv]. O governo suportado pela opinião pública, onde o efeito de pânico era evidente, e por um relatório do Centro Europeu de Controlo de Doenças[v] avançou precocemente para medidas de distanciamento, incluindo o encerramento das escolas, com um discurso coeso, duro e assertivo[vi]. As imagens repetidamente passadas pelos meios de comunicação social sobre a situação em Itália e em Espanha atuaram de forma sinérgica para o impacto na comunidade e para o cumprimento das regras definidas.

O resultado destas medidas será amplamente referido a nível internacional como o “bom exemplo português”, com alguns estudos académicos a demonstrarem o efeito positivo do confinamento[vii]  nos resultados apresentados por Portugal. Esta situação permitiu recentrar o problema da pandemia nas suas consequências económicas, que se tornaram o principal foco de preocupação em maio-junho de 2020, com o governo a procurar suportar as empresas e a comunidade[viii], apontando os meses de Verão como essenciais para salvar o turismo e a economia[ix]. Para tal, o desconfinamento teria de ser regrado e controlado, de forma a evitar uma segunda onda precoce. A comunicação do governo apoiado pelo presidente da República manteve a tónica no equilíbrio entre a abertura da economia e o controlo da pandemia até meados de abril.

Nesse momento, duas decisões do governo, de índole político, ameaçaram descredibilizar todo o capital acumulado com a gestão da pandemia. Ambas motivadas pelas necessidades de gestão de um governo minoritário na Assembleia da República, permitindo a comemoração do Primeiro de Maio em vinte e três cidades de Norte a Sul do país, e a realização da “Festa do Avante”, entendida como um evento político e não como um local de confraternização e festival de música. Esta ambivalência originou um aumento da tensão entre o governo e as organizações médicas e de profissionais de saúde, que saíram a público denunciando o risco eventual de antecipação da segunda vaga prevista para o Outono. Esta dissonância, em crescendo, foi-se acentuando com o aumento progressivo do número de infetados e de internamentos hospitalares registados em finais de setembro, com o discurso do governo centrado na frase “Portugal não pode voltar a parar, a fechar[x]”.

Mas voltou a fechar. Um mês mais tarde era evidente que viria aí um novo confinamento, a questão era “como” e “até quando”. As festas tradicionais do mês de dezembro estavam em causa, e os comerciantes alarmados pelo impacto que esse confinamento poderia representar para a sobrevivência dos seus negócios. Esta pressão foi sentida pelo governo que adotou um discurso de “dois pesos e duas medidas” para o Natal e para a Passagem de Ano. Seriam permitidas as comemorações do Natal, em família, preferencialmente e apenas com a família “nuclear”, adotando as necessárias medidas de distanciamento, higiene e uso de máscara. Assim como as compras de Natal, nos centros comerciais e restante comércio tradicional, em horário menos restrito que aquele que ocorreu no mês de novembro. Para as festas do final do Ano, não haveria permissão para a sua realização e todos deveriam abster-se de organizar festejos privados. Mais uma vez, a dissonância era evidente e não foi clara, nem tão pouco transparente a estratégia de comunicação do governo.  E o pior ainda estava para vir. Porque em dezembro, ainda antes do Natal, a comunicação social inundou o país com as notícias sobre as vacinas para a COVID-19[xi]. A salvação vinha aí, e o governo garantia que logo no início do ano seria iniciado o programa de vacinação de acordo com o calendário definido pela comissão nomeada para o efeito. O somatório dos problemas de comunicação não podia ter sido mais perfeito para o desastre total. A estratégia adotada pelo governo revelou-se fatal. Nas palavras da médica Isabel do Carmo “No dia 24, juntámo-nos seis adultos e três crianças e, apesar das máscaras e das distâncias, alguma imprudência abriu por momentos a porta ao invisível. Contaminámo-nos todos e, fiados na falsa segurança do teste simples, alguns de nós multiplicaram o contágio[xii].”.

Se olharmos para esta descrição sumária das estratégias de comunicação realizadas pelo governo percebemos dois momentos distintos e claramente antagónicos. O primeiro em março e abril de 2020, onde a posição clara, frontal e determinada associada ao pânico criado pelo início da pandemia e pelas notícias internacionais permitiu um comportamento social adequado e uma resposta muito positiva da comunidade às regras definidas pelo executivo. Em oposição, a posição dissonante, sem interlocutores de confiança, capazes de identificar e segmentar os diferentes públicos-alvo e estabelecer uma estratégia de comunicação assertiva, com mensagens claras e objetivas, permitiu um efeito perverso na população. Para esta, cansada da pandemia, dos confinamentos e de regras confusas, senão antagónicas, a salvação estava a caminho, a vacina vinha aí, por isso estava tudo bem, só podia acabar bem. O que infelizmente não aconteceu, com milhares de portugueses internados e vivendo em direto e pessoalmente o que tantas vezes tinham visionado na televisão. Para muitos com um desfecho fatal.


[i] Bill Gates, TED, 3 de abril de 2015, “The next outbreak? We’re not ready”, https://www.ted.com/talks/bill_gates_the_next_outbreak_we_re_not_ready

[ii] Revista Sábado, 12 de Março de 2020, “Quando a diretora-geral da Saúde desvalorizou o impacto do coronavírus”, https://www.sabado.pt/portugal/detalhe/quando-a-diretora-geral-da-saude-desvalorizou-o-impacto-do-coronavirus

[iii] WHO Director-General’s opening remarks at the media briefing on COVID-19 – 11 March 2020 https://www.who.int/director-general/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-the-media-briefing-on-covid-19—11-march-2020

[iv] Público, 12 de Março de 2020, Samuel Silva, “«Alarme social» justifica fecho das escolas, defendem directores.  Conselho Nacional de Saúde Pública afasta cenário de encerramento generalizado dos estabelecimentos de ensino, o que apanhou de surpresa responsáveis educativos. Governo tem esta hoje a última palavra”

[v] Expresso, 2472, 14 de março de 2020, David Dinis e Liliana Vale “Governo espera pico do surto em maio”: “Não tínhamos consenso técnico nesta matéria. Na quinta-feira decidimos que tínhamos de ser mais rigorosos” […] Foi aí que um relatório do Centro Europeu de Controlo de Doenças deu a chave técnica para apoiar o discurso político […] propondo um conjunto de medidas de distanciamento social aos governos europeus…

[vi] Público, 13 março de 2020, primeira página, “Costa fala em “batalha de todos” e avisa: “Esta é uma luta pela nossa

própria sobrevivência”.

[vii] Peixoto at al, 2020, Initial Assessment of the Impact of the Emergency State Lockdown Measures on the 1st Wave of the COVID-19 Epidemic in Portugal, Acta Med Port 2020 Nov;33(11):733-741; Gerli, AG, Soriano, GB, 2020, COVID-19 mortality rates in the European Union, Switzerland, and the UK: Effect of timeliness, lockdown rigidity, and population density, Minerva Medica · June 2020. DOI: 10.23736/S0026-4806.20.06702-6

[viii] Público, 5 de junho de 2020, Victor Ferreira,“Layoff simplificado é prolongado um mês e novo apoio incentiva retoma”.

[ix] Expresso, 2475, David Dinis e Viviana Leite, “Governo prepara reabertura do secundário para 4 de maio”.

[x] Expresso, 21 de setembro de 2020, Hélder Gomes, “Covid. A responsabilidade individual, a previsão de mil casos diários e a recusa em fechar: “Parece que estamos a celebrar o modelo sueco”.

[xi] Expresso, 4/12/2020, 1º Caderno-Capa: “Metade da população portuguesa vacinada até ao verão”, “Regresso à normalidade ainda vai levar muitos meses”; Público, 21/12/2020, 1ªPágina: “Covid-19 – Agência Europeia do Medicamento deve dar hoje luz verde à vacina”, “Será possível vacinar 75 mil pessoas por dia, diz Francisco Ramos”; Observador, 17/12/2020, Vítor Rodrigues Oliveira, “Vacinação contra Covid-19 começa na Europa entre 27 e 29 de dezembro”.

[xii] Público, 29/01/2021, Isabel do Carmo, Opinião – Coronavírus, “Notícias do túnel”.

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