Autores: António da Luz Pereira, Deolinda Chaves Beça, José Pedro Antunes, Miguel Azevedo, Rui Macedo, Inês da Costa, Inês Ramos Genésio, Mariana Trindade, Rita Correia, Rita Rodrigues Moreira
Resumo: A ERS define Unidade Local de Saúde como uma concretização da integração vertical, englobando os cuidados de saúde primários e secundários de uma área geográfica. O Decreto-Lei n.º 102/2023 generaliza o modelo ULS a todos os hospitais e CSP do país. Nesse âmbito, o Grupo de Estudos de Gestão em Saúde da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar elaborou um estudo transversal, através da aplicação de um inquérito online, de resposta voluntária e anónima, para avaliar as perceções dos profissionais de Medicina Geral e Familiar quanto à universalização deste modelo. Resultaram 342 respostas válidas, analisadas estatisticamente de forma descritiva simples. Dos respondentes, 63,9% eram do sexo feminino e 40,9% tinham entre 35-44 anos. A maioria (83,6%) exercia funções como especialista em MGF e 41,8% tinha algum cargo com responsabilidade organizativa. Contudo, apenas 25,4% tinham trabalhado previamente numa ULS. Relativamente à gestão de recursos materiais/financeiros, a maioria considerou que a mudança para ULS terá um impacto negativo nos CSP, em diferentes aspetos: valorização dos profissionais e da sua carreira; distribuição equitativa de investimento entre CSP e secundários; serviços de apoio; aquisição de novos equipamentos; manutenção de instalações e equipamentos; disponibilidade de stock de materiais. Apenas a acessibilidade a materiais diferenciados foi considerada uma área mais positiva. Relativamente aos recursos humanos, a tendência foi para uma perceção de impacto negativo em todos aspetos: liderança; clima organizacional; tarefas burocráticas; pagamento por desempenho; atribuição de novas tarefas e exigências de novas competências “task shifting”; adequação entre carga de trabalho e o horário estabelecido; motivação. No que diz respeito ao reforço das equipas dos CSP, a tendência foi para um impacto mais negativo do que positivo, exceto no âmbito da inclusão de profissionais de serviços hospitalares em equipas de proximidade nos CSP. Por último, quando questionados sobre se o financiamento das ULS irá satisfazer adequadamente as necessidades das populações atendidas, a grande maioria considerou que não. Deste modo, os resultados revelam uma perceção globalmente negativa quanto à transição para o modelo de ULS. Em áreas como a valorização dos profissionais e a atribuição de novas competências verificou-se uma perceção particularmente negativa. Um dos principais motivos para a perceção globalmente negativa, poderá ser a não superioridade de desempenho das ULS, de acordo com a evidência disponível. Como limitações, os autores reconhecem o método de seleção da amostra (por conveniência) e o facto da maioria dos respondentes nunca ter trabalhado numa ULS, o que poderá contribuir para menor confiança no modelo. Perante os resultados obtidos, o GEST reforça a necessidade de maior envolvimento dos profissionais e de partilha de informação relativa ao processo de mudança. Ademais, destaca como principais desafios, a distribuição dos recursos, com o risco de ênfase nos cuidados hospitalares, aliado ao subfinanciamento crónico do Serviço Nacional de Saúde. Neste sentido, considera pertinente a replicação de inquéritos semelhantes no futuro, por forma a reavaliar o processo e promover a melhoria contínua.
Palavras-chave: integração vertical; Unidade Local de Saúde; Cuidados de Saúde Primários; recursos materiais, financeiros e humanos.
Introdução: A integração vertical refere-se à criação de uma única entidade gestora de duas ou mais instituições que prestam serviços em diferentes níveis de cuidados, visando gerar ganhos em saúde para a população. (Brown & P. McCool, 1986; Santana & Costa, 2008)
A Entidade Reguladora da Saúde (ERS) define Unidade Local de Saúde (ULS) como uma concretização da integração vertical, que integra os cuidados de saúde primários (CSP) e secundários de uma área geográfica. A primeira ULS em Portugal foi criada em 1999, em Matosinhos. Depois disso, entre 2007 e 2012 surgiram mais sete. (ERS, 2015)
Em 2022, foi publicada uma revisão sistemática (Miranda da Cruz et al., 2022) que ressalvou a importância dos objetivos basilares na criação das ULS: melhorar o acesso, maximizar a eficiência produtiva, fomentar a qualidade e melhorar o desempenho económico-financeiro. Contudo, a mesma teve dificuldade em concluir que existem melhores resultados nesta integração vertical, elencando alguns dos constrangimentos ao seu sucesso, nomeadamente, o modelo de financiamento, a gestão dos recursos humanos e a ausência de estudos prévios para avaliar as especificidades de cada local. O Decreto-Lei n.º 102/2023 generaliza o modelo ULS a todos os hospitais (excepto IPO) e CSP do país. (Decreto-Lei n.o 102/2023, 2023) Apesar das vantagens teóricas descritas, parece haver algum ceticismo na comunidade médica relativamente à sua eficiência e às melhorias práticas. Assim, da necessidade, de compreender, melhorar e construir sobre as transformações em curso, o Grupo de Estudos de Gestão em Saúde (GEST) da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF) elaborou o estudo “AVALIA-ULS: Análise das Vantagens e Limitações das Unidades Locais de Saúde (ULS) – Perspetivas da Medicina Geral e Familiar” para avaliar as perceções dos profissionais de Medicina Geral e Familiar (MGF) quanto à universalização deste modelo.
Métodos: Elaborou-se um estudo transversal, através da aplicação de um inquérito online Google Forms® de resposta voluntária e anónima, aos profissionais de MGF, que decorreu entre sete de agosto e cinco de novembro de 2023. O questionário encontrava-se dividido em quatro partes: a) caracterização sociodemográfica; b) gestão de recursos materiais, financeiros e humanos; c) organização de recursos e formação e ainda d) modelo de prestação de cuidados. Neste artigo apresentam-se os resultados de a) e b), constituídas por três perguntas de resposta fechada e uma aberta. A resposta fechada incluía cinco opções, traduzindo-se na opinião sobre a forma como a transição para ULS impactará os CSP: muito positiva, positiva, nem positiva nem negativa, negativa ou muito negativa. As respostas foram exportadas e analisadas em ficheiro da Microsoft Office Excel® 2013 e convertidas para o IBM® Statistical Package for the Social Sciences (SPSS)® Statistics, v. 27 (2020).
Resultados: O estudo incluiu 342 respostas válidas de profissionais da área de MGF, de 52 agrupamentos de centros de saúde (ACeS) distintos, de norte a sul de Portugal. Dos respondentes, 63,9% (n=218) eram do sexo feminino e 40,9% (n=140) tinham entre 35-44 anos. A maioria (83,6%; n=286) exercia funções como especialista em MGF, 10,5% eram internos de formação específica e 5,8% (n=20) categorizaram-se como “outros”. A maioria estava inserida numa unidade de saúde familiar modelo B (47,7%) ou A (27,2%), e quase metade (41,8%; n=143) exercia algum cargo com responsabilidade organizativa (Diretor Executivo, Presidente do Conselho Clínico e de Saúde, Coordenador, membro do Conselho Técnico). Cerca de 25,4% tinham trabalhado previamente em ULS.
Na primeira questão “Relativamente aos seguintes tópicos, avalie de que forma considera que a mudança para uma ULS impactaria a gestão de recursos materiais/financeiros, em relação aos CSP, atualmente” (figura 1) a maioria considerou que terá um impacto negativo, versus positivo, nos seguintes aspetos: valorização dos profissionais e da sua carreira (56,2% vs. 9,0%); distribuição equitativa de investimento entre CSP e secundários (64,9% vs. 16,1%); serviços de apoio (informática, segurança, limpeza) (37,5% vs 29,8%); aquisição de novos equipamentos (47,4% vs 20,5%); manutenção de instalações e equipamentos (42,4% vs 19,3%); disponibilidade de stock de materiais (47,0% vs 24,9%). Apenas a acessibilidade a materiais diferenciados (material de sutura, fármacos) foi considerada uma área mais positiva (29,8% vs 35,1%). Na análise por subgrupos, com e sem experiência anterior em ULS, verificou-se uma impressão global de impacto tendencialmente negativo em ambos. Essa proporção foi ainda maior nos inquiridos com experiência prévia, exceto no tópico de valorização dos profissionais, embora sem significância estatística. De referir ainda que quanto ao impacto nos serviços de apoio, os respondentes com experiência anterior em ULS, apontaram como tendencialmente positivo (36,7% vs. 39,0%).
Na resposta à segunda questão “Relativamente aos seguintes tópicos, avalie de que forma considera que a mudança para uma ULS impactaria os recursos humanos dos cuidados de saúde primários” (figura 2), a tendência foi para a perceção de um impacto negativo em todos aspetos: liderança – proximidade, confiança, representatividade, humanismo (60,8% vs 14.1%); clima organizacional – sentimento de pertenças, partilha de missão, valores, ambiente interpares, envolvimento organizacional (56,4% vs 19.3%); tarefas burocráticas (58,5 vs 8.7%); pagamento por desempenho (45,9% vs 18,4%); atribuição de novas tarefas e exigências de novas competências “task shifting” (67,9% vs 10,6%); adequação entre carga de trabalho e o horário estabelecido (57,6% vs 6,5%); motivação (57,0% vs 11,4%). Na análise por subgrupos, verificou-se uma impressão global de impacto negativo, embora em menor proporção nos médicos com experiência prévia em ULS. Não obstante, essa diferença apenas foi estatisticamente significativa (p<0.05) em 4 aspetos: motivação (p=.000), adequação entre carga de trabalho e horário estabelecido (p=.001), clima organizacional (p=.000) e liderança (p=.001).
Na resposta à terceira questão “Relativamente aos seguintes tópicos, avalie de que forma considera que a mudança para uma ULS impactaria o reforço das equipas dos cuidados de saúde primários”, a tendência foi para um impacto mais negativo do que positivo, em três dos quatro parâmetros avaliados. Apesar disso, a diferença entre os dois domínios foi mais ténue, a saber: substituição de profissionais ausentes (37,1% vs 30,9%); processo de contratação (37,7% vs 32,2%); contratação adicional de recursos humanos (41,2% vs 31,0%). No subgrupo com experiência prévia em ULS, a proporção de impacto negativo foi superior, embora essa diferença não tenha sido estatisticamente significativa. Quanto à “inclusão de profissionais de serviços hospitalares em equipas de proximidade nos cuidados de saúde primários” foi globalmente avaliada como um aspeto positivo (25,4% vs 48,2%).
Por fim, relativamente à pergunta “Considera que o financiamento das ULS vai satisfazer adequadamente as necessidades das populações atendidas? Porquê?” a grande maioria (n=313, 91.5%) considerou que não. Os motivos explanados incidem no receio do hospitalocentrismo, na dúvida sobre adequação do financiamento e na dificuldade de resposta aos exames complementares a nível hospitalar. Apesar disso, oito respondentes (2,3%) consideraram que sim, caso a ULS trabalhe como um todo, com CSP e hospitalares guiados pela mesma missão e objetivos. Os restantes 21 respondentes referiram não ter opinião (n=11) ou não forneceram respostas unívocas (sim/não) (n=10).
Discussão: Perante o atual cenário do SNS, numa evolução que resultará do equilíbrio entre continuidade e mudança, os resultados obtidos revelam áreas críticas de preocupação. A literatura suporta que as mudanças organizacionais estão frequentemente associadas à incerteza dos profissionais sobre a forma como essas alterações podem impactar o seu trabalho e o seu bem estar. (Nilsen et al., 2020) Per Nilsen et al concluíram que o sucesso das mudanças advém do envolvimento no processo, da preparação e do reconhecimento do valor da mudança por parte dos profissionais. (Nilsen et al., 2020) No estudo realizado pela ERS (Entidade Reguladora da Saúde, 2015), há oito anos, com o foco na comparação do desempenho das ULS (acessibilidade, qualidade, eficiência e desempenho económico-financeiro) com serviços não ULS, concluiu-se uma ausência de vantagem do modelo vertical. Verificou-se similitude de resultados, nomeadamente no que diz respeito à acessibilidade, à proximidade de cuidados e constrangimentos reportados pelos utentes. No entanto, atestou-se uma melhor performance das ULS em algumas áreas: rácio de médicos e enfermeiros superiores no total da população e maior número de enfermeiros por médico na maioria das ULS – um parâmetro utilizado como indicador de eficiência produtiva. Contudo, em Portugal não existem estudos que tenham avaliado a opinião dos profissionais de saúde relativamente à transição para integração vertical de cuidados. Os resultados obtidos no presente estudo revelam uma perceção globalmente negativa quanto à transição para o modelo de ULS. Em áreas como a valorização dos profissionais e a atribuição de novas competências verificou-se uma perceção particularmente negativa. Porém, a maioria dos inquiridos consideraram a acessibilidade a materiais diferenciados e a inclusão de profissionais de serviços hospitalares em equipas de proximidade nos CSP, como possíveis aspetos positivos desta mudança organizacional.
Como limitações do estudo, os autores reconhecem o método de seleção da amostra (amostra de conveniência) e suas implicações na interpretação dos resultados. Além disso, o facto da maioria dos respondentes nunca ter trabalhado num modelo de ULS poderá contribuir para menor confiança no modelo. Por outro lado, a importante proporção de respondentes com cargos de gestão pode ser indicativa da vontade de envolvimento destes profissionais, e também de maior apreensão no processo de mudança. Além disso, a não superioridade de desempenho das ULS, de acordo com a evidência disponível, pode ser um dos principais motivos para a perceção globalmente negativa acerca desta mudança. De futuro, o GEST destaca como um dos principais desafios, a distribuição dos recursos, com o risco de ênfase nos cuidados hospitalares, aliado ao subfinanciamento crónico do Serviço Nacional de Saúde. Portanto, com a evidência obtida no presente estudo, surge a oportunidade de se formularem soluções para as possíveis fragilidades do modelo ULS, numa perspetiva de melhoria contínua de cuidados.
Conclusão: Este estudo permitiu averiguar a perceção dos profissionais dos CSP relativamente ao processo de integração vertical, proporcionando a reflexão sobre os aspetos a melhorar nesta transição de modelo organizacional. Perante os resultados obtidos, o GEST reforça a necessidade de maior envolvimento dos profissionais, assim como de partilha de informação ao longo de todas as fases do processo de mudança, numa construção colaborativa da melhor organização de prestação de cuidados. Neste sentido, o GEST considera que seria pertinente a replicação de inquéritos semelhantes no futuro, por forma a reavaliar o processo, promover a melhoria contínua e uma maior proximidade de todos os profissionais com os órgãos de gestão.
Figuras:
Figura 1. Resultados relativos às respostas sobre a expectativa do impacto da mudança para ULS na gestão de recursos materiais/financeiros.
Figura 2. Resultados relativos às
respostas sobre a expectativa do impacto da mudança para ULS na área dos
recursos humanos.
REFERÊNCIAS:
Brown, M., & P. McCool, B. (1986). Vertical integration: exploration of a popular strategic concept. Health Care Management Review, 11(4), 7–19.
Decreto-Lei n.o 102/2023, Diário da República n.o 215/2023, 1a série 4 (2023).
Entidade Reguladora da Saúde. (2015). Estudo sobre o desempenho das Unidades Locais de Saúde.
Miranda da Cruz, J. R., Pimentel, M. H., Rodriguez Escanciano, S., & Casares Marcos, A. B. (2022). Unidades Locais de Saúde: Ganhos Económicos e Ganhos em Saúde. Gestão Hospitalar – Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH), 29.
Nilsen, P., Seing, I., Ericsson, C., Birken, S. A., & Schildmeijer, K. (2020). Characteristics of successful changes in health care organizations: an interview study with physicians, registered nurses and assistant nurses. BMC Health Services Research, 20(1). https://doi.org/10.1186/s12913-020-4999-8
Santana, R., & Costa, C. (2008). A integração vertical de cuidados de saúde: aspectos conceptuais e organizacionais. Revista Portuguesa de Saúde Pública, 7, 29–56.
Excelente que se tenha iniciado este questionário. As conclusões e limitações do próprio questionário bem como as limitações da amostra bem sublinhadas. Parabens! Como sabemos a mudança leva tempo e inicialmente as resistências são sempre infinitas e expectáveis até que tudo encaixa como acontece nos puzzles