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UMA PANDEMIA-COMO ABORDAR?

Artigo da autoria de Maria de Belém Roseira, Ex-Ministra da Saúde

Percebemos bem, agora, cerca de um ano passado sobre a declaração como pandemia da SARS  COV-2, o impacto social e económico de uma tragédia desta natureza.

Para lidar com um fenómeno com características desconhecidas como este era- e continua a ser em múltiplos aspectos- e com a dimensão que tão rapidamente atingiu, não  seria possível  existir preparação de experiência feita. E isso veio a verificar-se na actuação das instâncias internacionais competentes bem como nas nacionais, um pouco por todo o mundo.

Mas essa dificuldade não atingiu todos da mesma forma.

Começando pela Organização Mundial de Saúde (OMS), as hesitações e as contradições foram muitas e as recomendações não tiveram em conta o contexto do mundo complexo em que nos movemos.

Por um lado, a informação produzida que tem que ser ajustada a públicos – alvos diferentes e não se avaliou o poder das redes sociais por muitos utilizada para fazer espalhar a mentira e/ou a deturpação da verdade, porventura mais insidiosa esta.

Por outro lado, esqueceu-se que as pessoas hoje em dia são muito menos instrumentalizáveis.  Não podem ser tratadas como seres amorfos, meros receptores das instruções que lhes apontam como caminho único. No mundo actual, as pessoas colocam questões que têm que ser respondidas com argumentação convincente e devem ser tratadas como agentes da sua própria saúde. A justificação para o não uso das máscaras é paradigmática. Todos sabiam que não existiam em número suficiente para os profissionais de saúde e todos teriam compreendido que a eles fossem garantidas prioritariamente. Apresentar justificação ilógica para a sua não indicação é inaceitável.

Mas a OMS parece ter compreendido os erros e tentou inverter caminho! Um ano depois é tudo bem diferente!

Quanto às abordagens de cada país – e sem pretender fazer aqui uma viagem global – penso que podemos identificar, nas regiões do mundo mais afastadas de nós, em termos de eficácia das políticas conduzidas para o controle da pandemia, a Nova Zelândia e a Coreia do Sul. A primeira, uma das mais abertas democracias do mundo, a outra com uma marca cultural de obediência às regras definidas.

O que impressiona na Nova Zelândia é que foi a forma como a luta contra a pandemia foi conduzida, próxima da população e com uma abordagem empática, sentida como sincera e natural, e com a consciência de que a ameaça era real e grave, que assegurou à Primeira Ministra uma vitória com maioria absoluta nas eleições que entretanto tiveram lugar há poucos meses e que nos termos constitucionais aí vigentes seria altamente improvável que pudesse ter sido conseguida.

Passando para o continente americano, percebeu-se bem como o populismo é destruidor. Quer Trump, felizmente já afastado do lugar, quer Bolsonaro, mostraram como incompetência, e falta de princípios, tudo junto, em política, constituem uma mistura explosiva destruidora de vidas e causadora de sequelas de dimensão ainda não avaliável.

Uma ocorrência de saúde pública grave e complexa só pode ser controlada através do conhecimento científico existente, da partilha alargada desse conhecimento e da prática da verdade e da transparência na informação. Esta metodologia é fundamental para conseguir a adesão e a confiança das pessoas nas orientações transmitidas e a diminuição do número de vítimas.

Já a Europa, em meu entender, pecou por falta de humildade.

Do alto dos seus sistemas de protecção social, os melhores do mundo, pensou que não haveria pandemia que ameaçasse de forma não controlável a saúde dos seu cidadãos. E o resultado ficou à vista, com situações dramáticas logo na primeira fase, em Itália, em Espanha, na Bélgica, no Reino Unido, embora aqui por se ter tentado atingir a imunidade de grupo por “métodos naturais” o que veio a verificar-se como politicamente insustentável face ao custo inaceitável em termos de vidas humanas.

Quanto a Portugal, e de uma forma muito sintética, considero que houve uma fase muito inicial em que alguns desvalorizaram o previsível impacto da pandemia.

E se nessa primeira fase não tivesse havido uma pressão forte de personalidades e representantes institucionais reclamando junto do Governo e do Presidente da República um confinamento geral, não sabemos se não teríamos então vivenciado o mesmo que acontecia em Itália e Espanha.

O Norte do País foi especialmente fustigado com a ocorrência de casos importados de Itália na sequência da participação do respectivo tecido industrial em feiras internacionais.

O confinamento foi muito pesado económica e socialmente mas salvou vidas. Acabou, contudo, por deixar junto de algumas autoridades a convicção de que o SNS era resiliente a qualquer ameaça e que estávamos completamente blindados!

Recordo aqui a desqualificação que tentaram fazer da entrevista dada pela Directora-Geral da Saúde ao Expresso há cerca de um ano[1] quando, com toda a serenidade previu que 10% da população portuguesa poderia ser infectada e 2% não resistiria. Os números de que dispomos à data em que escrevo permitem-nos concluir que essa previsão estava correcta.

Imagino o clamor político que tal entrevista tenha suscitado.

Na minha leitura, este foi o episódio que determinou a perda de espontaneidade no fornecimento de informação clara, precisa e concisa aos cidadãos, assente na objectividade dos números e na sua correlação. Esta tem que ser marca de uma Autoridade Nacional de Saúde: ajudar a fazer uma leitura correcta do fenómeno e transmitir as orientações e comportamentos adequados à salvaguarda da saúde das populações.

Se me perguntam o que faria de diferente na condução de uma situação como esta, de uma dimensão tão brutal, tão distante de tudo quanto temos vivenciado ou poderíamos imaginar, a minha resposta não pode ser lida nem interpretada como um não reconhecimento do esforço realizado por quem teve que assumir os vários comandos da situação.

Corresponde, isso sim, ao exercício do meu livre direito de opinião do qual não abdico porque foi uma das riquezas conquistadas através da Democracia.

Respondendo, então, à pergunta colocada, considero que, antes de tudo, fomos confrontados com o dramático impacto da não articulação entre áreas governativas que estão destinadas a entender-se. Refiro-me à relação íntima e ao estreito trabalho que tem que existir entre Saúde e Segurança Social.

A opção por residência num lar não retira às pessoas a qualidade de beneficiárias do SNS e também não é facto desconhecido para ninguém o acentuado índice de envelhecimento da população portuguesa. Isso requer a definição de modelos de prestação de cuidados específicos que constitui responsabilidade conjunta. Reclama-se, pois, uma actuação intersectorial.

Quanto à abordagem especifica da pandemia, na minha visão faltou planeamento e planeamento estratégico.

Perante uma ameaça de Saúde Pública de dimensão e gravidade ainda desconhecidas mas previsivelmente avassaladora, teria sido necessário juntar competências várias que agregassem o melhor saber para a definição de um plano de actuação em que cada um conhecesse o que se pretendia alcançar e o papel de cada entidade para que se alcançasse o objectivo pretendido.

Agregar pessoas com experiências e conhecimentos diversos é uma mais valia extraordinária quando temos uma ameaça pela frente e limitações e insuficiências de natureza vária para poder enfrentá-la cabalmente. E, sobretudo, valorizar a diversidade das opiniões e a capacidade crítica. Aprendi muito cedo que a subserviência não serve quem diz servir mas serve-se a si própria!

Planeamento estratégico a nível do Estado não é uma prisão mas antes um exercício de inteligência colectiva que visa prosseguir o bem comum e que deve ser progressivamente ajustado na sua execução em função de uma avaliação permanente.

Ignorou-se, também, a essencialidade do recurso a um orgão de aconselhamento científico independente. E quando digo independente, é independente mesmo. Ou seja, com total autonomia e presidido mediante escolha entre pares e não por qualquer membro do Governo.

Não só não se criou este espaço de produção de conhecimento como outros órgãos existentes- e refiro-me, por exemplo, ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) – foram esquecidos e ignorados quando temos estado sistematicamente confrontados com problemas de natureza ética. Valham-nos as normas deontológicas das profissões da saúde e a autonomia profissional destas mas não reflectem a amplitude de representatividade do CNECV.

Ainda e desde o início se confundiu, a meu ver erradamente, o espaço próprio de dois planos de intervenção distintos, ou seja: o da Autoridade de Saúde que tem um papel que decorre das funções que desempenha a nível técnico e científico, e o do Governo que decide tendo que sopesar outras ponderações.

Ora, esse dois patamares apareceram durante demasiado tempo como intrinsecamente ligados. As conferências de imprensa conjuntas foram a prova disso. Por essa razão, a louvável obrigação de informar confundiu-se com quantidade de informação de difícil abordagem qualitativa o que prejudicou a inteligibilidade das conclusões tiradas por cada um dos níveis de decisão, quer pela comunicação social, quer pelo público em geral.

Considero, ainda, que a forma como ultrapassámos com relativa facilidade a primeira fase da pandemia confirmou como foi certeira e atempada a decisão relativa ao primeiro confinamento. Mas o grau de ameaça mantinha-se e, como tal, era necessário juntar forças e não dividi-las.

Nunca teria feito, pois, um discurso desvalorizador dos outros elementos integrantes do sistema de saúde pois, em tempo de pandemia, todos temos que estar com o SNS!

Ninguém pode ser dispensado de ter em atenção primeira a realização do bem comum. E o direito à vida, o mais importante de todos os direitos, sobrepõe-se a posicionamentos ideológicos. Neste caso, salvar vidas e tratar com os máximos padrões de qualidade possível os doentes é palavra de ordem.

Requeria-se junção de esforços e nunca divisão, um discurso colaborativo e nunca de hostilização. E isso é compatível com exigência e transparência. Seria, aliás, uma época essencial para definir regras claras e transparentes de relacionamento. Optou-se antes por um discurso público de divisão e de agressividade o que, com grande probabilidade, acaba por levar à “ perda da face”.

O mesmo se verificou relativamente à desvalorização da oferta de trabalho voluntário por parte de profissionais de saúde que generosamente entenderam oferecer ao serviço público a sua disponibilidade de tempo e o seu saber.

E tanto que eles eram necessários: a descapitalização continuada do SNS e do Ministério da Saúde fez-se sentir de forma irremediável sobretudo a nível da Saúde Pública – a linha da frente no controle de uma pandemia – e não só se desperdiçou esse oferecimento como não se foi capaz de reforçar as linhas de seguimento dos inquéritos epidemiológicos através de finalistas dos cursos de medicina e de enfermagem como reiteradamente sugeriram os respectivos Directores das Escolas. E não deveríamos nunca ter desperdiçado estas energias. Até porque a falta de recursos humanos na rede de Saúde Pública impediu o adequado seguimento das cadeias de transmissão o que acrescenta insegurança ao conhecimento da situação real e à correcta tomada de decisões.

Aqui chegados, verificamos, ainda, como teria sido importante definir critérios de vacinação de acordo com o risco.

Os três objectivos fundamentais em tempos desta pandemia – como descritos, aliás, no Plano Outono/ Inverno da Direcção-Geral da Saúde – são preservar vidas humanas, proteger os mais vulneráveis e preparar a resposta ao crescimento epidémico da COVID-19. Foram escritos mas não seguidos!

Não vou aqui brandir os números da letalidade e a sua distribuição por faixas etárias. Basta dizer que os maiores de 80 anos correspondem a dois terços das vitimas totais. Por isso os países que incorporam conhecimento na sua decisão optaram por colocar em primeiro lugar os mais idosos nos grupos a vacinar.

Portugal optou por caminho diverso: mais complicado, mais difícil de gerir e, em consequência, mais permeável a desvios e a fraudes. Também mais delicado, porque implica contacto alargado de informação de saúde que é sensível e cujo acesso obedece a legislação de controle estrito. E fê-lo sem qualquer justificação científica. O resultado é conhecido.

Felizmente, neste caso específico, parece ter-se arrepiado caminho.

E os doentes não Covid? Como recuperar os atrasos? Tarefa urgentíssima! E a sobremortalidade?

Perguntas ainda sem resposta.

Saber lidar com uma situação nova e de enorme complexidade sem cometer erros, teria sido impossível. Mas mandam a sageza, a prudência e a humildade que os erros sejam devidamente analisados para que se transformem em fonte de aprendizagem e de correcção de caminho.


[1] E o Expresso recordou este facto na sua edição de 19 de fevereiro de 2021

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