Três anos de cortes na despesa com transporte de doentes, com exames de diagnóstico e terapêutica, com horas extraordinárias e, sobretudo, com medicamentos não provocaram mossa nas estatísticas da actividade assistencial do SNS. Mas multiplicam-se as suspeitas de que há problemas. Vai ser preciso mais tempo para avaliar o impacto real da crise na Saúde
Em três anos, o número de doentes que faltam às consultas aumentou de forma significativa no Centro Hospitalar do Porto (CHP). Se antes de 2011 a percentagem dos que não apareciam rondava os 10 a 11%, agora atinge 15%, calcula o presidente do Conselho de Administração do CHP, Fernando Sollari Allegro. Os doentes faltam sobretudo porque escasseia o dinheiro para custear os transportes, especula o administrador hospitalar, para quem não será por acaso que “a primeira quinzena [do mês] não é igual à segunda” , período em que as ausências são mais frequentes.
“Os cidadãos sentem algumas dificuldades. Os transportes foram muito cortados, as taxas moderadoras subiram e isso tem significado”, acredita Sollari Allegro, que desvaloriza as reduções do orçamento do seu centro hospitalar – o CHP perdeu 28 milhões de euros, cerca de 16% do total do orçamento anual –, até porque estas acabaram por ser compensadas pela diminuição de gastos com os salários dos funcionários e com os fármacos. O que o preocupa e muito é a perda de recursos humanos (tem hoje menos 290 profissionais) e as barreiras que enfrenta para recuperar os que vão saindo. “Sentimos muita dificuldade no recrutamento de pessoal. Há mais burocracia, os governos de direita são mais controladores”, lamenta.
“Os dados não apontam, por enquanto, para dificuldades no acesso ao SNS. Mas quem está no terreno ouve o que dizem os doentes. E eles dizem que não vêm às consultas porque não têm dinheiro para pagar transportes ou taxas moderadoras”, corrobora Marta Temido, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares.
O corte em um terço da despesa com transporte de doentes não urgentes era justamente uma entre as várias dezenas de medidas inscritas no memorando de entendimento assinado com a troika na área da saúde. Foi, pode dizer-se, cumprido à risca. Doentes que antes tinham transporte gratuito passaram a pagá-lo. Graças à revisão das regras de comparticipação do transporte de doentes não urgentes e outras medidas, entre 2010 e 2013 a despesa diminuiu 54,9 milhões de euros, uma redução de 36,8%, contabiliza o Ministério da Saúde.
Entretanto, a confusão instalou-se e, apesar de a tutela garantir que os doentes oncológicos têm direito a transporte gratuito mesmo para as consultas de seguimento, há autarquias que começaram a patrocinar as viagens de alguns pacientes com cancro até às grandes cidades. Em Março passado, responsáveis da Sociedade Portuguesa de Transplantação expressaram publicamente a sua preocupação devido às faltas de alguns doentes, também por causa dos transportes.
Em algumas áreas começaram a surgir outros dados que evidenciam sinais preocupantes. Entre 2010 e 2012, a mortalidade infantil aumentou de 2,5 para 3,4 por mil (entretanto voltou a diminuir para 3 por mil, no ano passado) e as recaídas no uso de heroína quase triplicaram. Outro indicador que o professor da Escola Nacional de Saúde Pública e ex-director-geral da Saúde, Constantino Sakelarides, fez questão de destacar, porque o impressionou particularmente, foi o facto de o número de cirurgias oncológicas ter diminuido em 2012, o que sucedeu pela primeira vez em seis anos.
Nos últimos tempos, têm-se multiplicado também as notícias que dão conta de casos trágicos de doentes que esperaram tempo demais por exames, como o da mulher que aguardou dois anos por uma colonoscopia para concluir que tinha um cancro já inoperável, e os relatos de vítimas de acidentes de viação que foram transportadas para os hospitais pelos bombeiros porque as viaturas médicas de emergência (VMER) estavam inoperacionais, por falta de médico. São “casos pontuais”, desdramatizaram os responsáveis do Ministério da Saúde que, ainda assim, trataram de mudar as regras de forma a aumentar o número de colonoscopias no SNS e conseguir que mais médicos estivessem disponíveis para integrar as tripulações das VMER. “Estas notícias fazem parte de uma campanha contra o ministério”, desvaloriza Sollari Allegro.
“Os primeiros afloramentos da asfixia financeira começam a aparecer”, sustenta Mário Jorge Neves, da Federação Nacional dos Médicos, para quem é inequívoco que hoje “o SNS está esvaziado em termos de resposta geral”. “Adiam-se cirurgias por falta de material, até de simples batas, não se fazem exames, faltam medicamentos para entregar a doentes crónicos”, enumera. “A insatisfação profissional é generalizada”, acrescenta, lembrando que foram muitos os médicos que optaram pela reforma antecipada.
Os dados oficiais de monitorização da actividade do SNS desmentem esta interpretação. Provam mesmo que, nestes três complicados anos, até se fizeram mais cirurgias, mais consultas nos hospitais e mesmo mais urgências (estas diminuíram em 2012, mas voltaram a aumentar no ano passado). As taxas moderadoras duplicaram sim, mas “mais 1,4 milhões de pessoas ficaram isentas”, lembra o ministério, que nota que apenas 20% dos cidadãos que recorrem ao SNS têm de as pagar e que o acréscimo de custos (100 milhões de euros) foi compensado pelas poupanças com medicamentos. Neste ponto, o ministério sublinha que, de forma deliberada, quis ficar aquém do que pedia atroika (receitas adicionais da ordem dos 200 milhões de euros).
Fonte: Público, 11 de Maio de 2014