Artigo da autoria de Generosa do Nascimento – Professora no ISCTE-IUL, Diretora do Executive Master em Gestão de Serviços de Saúde e da Pós-graduação em Gestão para Profissionais de Saúde do ISCTE Executive Education
O atual surto pandémico abalou o Mundo. Contudo, há muitos anos que se previa uma pandemia desta envergadura. Faltava apenas a data e a amplitude!
Não é a primeira vez que fenómenos pandémicos assolam a humanidade. Apesar de expetáveis, a imprevisibilidade da sua emergência torna-se uma ameaça e um desafio.
A pandemia COVID19 confrontou todo o Sistema Nacional de Saúde com um “tsumani” de magnitude muito elevada. Emergiu a necessidade de gerir esta “gigacrise” com impactos na saúde, na economia, na sociedade e em cada, um de nós. De repente, todo e qualquer gestor, político, profissional de diferentes áreas científicas, jornalista e uma parte significativa dos cidadãos tornaram-se “especialistas” em Gestão de Unidades de Saúde. Neste contexto de crise, a política definida pelo Governo e especificamente pelo Ministério da Saúde, nem sempre ajudou o Serviço Nacional de Saúde (SNS) a cumprir as suas atribuições da melhor forma e nas condições esperadas.
Estamos perante um crescendo de impactos inimagináveis nos serviços de saúde e nos profissionais de saúde, com consequências graves nos doentes com COVID e na prevenção e tratamento dos casos não-COVID. Vemos profissionais de saúde exaustos, em desespero, em burnout e doentes, e os hospitais e as unidades de cuidados primários hiper-pressionados, com carência de profissionais de saúde e recursos tecnológicos, sujeitos a informações contraditórias e a impossibilidade de cumprimento dos compromissos assistenciais para a obtenção de ganhos em saúde da população. E os doentes e aqueles que estão a adoecer? Também se sentem estes impactos em todas as estruturas de apoio direto ou indireto ao setor da saúde. A população confronta-se com informações imprecisas, overdoses de números e estratégias de comunicação massivas e por vezes desalinhadas.
É compreensível, e as teorias assim o relevam, que quando se lida com o inesperado, um sistema (os indivíduos, as equipas, as organizações e as comunidades) desenvolva respostas novas perante a emergência de novas situações. À medida que a crise evolui, os atores-chave e outros que se interessam pelo tema ou pelos desafios que se geram, envolvem-se em tentativas para melhor compreenderem a situação e propõem soluções até então não testadas ou aprendidas previamente[1]. Se por um lado, surgem os “opinion makers, também é neste cenário de “esforço” que se podem gerar oportunidades de aprendizagem profunda, questionando a estratégia, os objetivos e os processos. Mas, nem sempre uma situação de crise origina aprendizagens individuais e coletivas!
No caso específico das Unidades de Saúde, a aprendizagem é um processo complexo. Importa referir, que estas organizações que fazem parte de uma rede vasta e diversificada, são de elevada complexidade, não apenas pela sua missão e expectativas geradas, como também pela existência de equipas multidisciplinares, com elevada autonomia e elevado grau de especialização técnico-científica, orientadas para a prestação de serviços de saúde de carácter preventivo, curativo e de reabilitação aos doentes, recorrendo a tecnologia avançada. São ainda espaços de ensino-aprendizagem e de investigação. A definição de políticas, estratégias, e a gestão de pessoas e de processos exigem um conhecimento e profissionalização de nível profundo. Têm que ser lideradas e geridas por especialistas que entendam o que é uma burocracia profissional, onde o centro operacional tem elevada importância e poder[2].
É neste contexto, que o conhecimento gerado durante esta “gigacrise” e a criação de momentos de reflexão individual e coletiva se tornam ainda mais relevantes para a melhoria contínua dos processos e o alcance dos resultados expectáveis. A aprendizagem daqui resultante deverá potenciar respostas fiáveis perante novas crises, deste tipo ou de outra natureza, mas também promover soluções viáveis para as situações desafiantes que ocorrem todos os dias nas Unidades de Saúde.
Neste “laboratório de aprendizagem”, face à pandemia COVID19, está a verificar-se que a gestão do conhecimento tecnico-científico clínico é exigente, mas as maiores disfunções emergem na liderança, na gestão de pessoas, na gestão das operações e da logística, na gestão da qualidade, na análise de dados, na gestão da comunicação, na gestão financeira, no controlo de gestão e nos sistemas de informação. Este “laboratório” também revela outras fragilidades, por exemplo, no estabelecimento de redes colaborativas entre os vários parceiros do Sistema Nacional de Saúde.
Uma investigação em curso no ISCTE – “Aprender com a COVID19” – permite identificar algumas boas práticas ou sugestões[3] decorrentes dos contextos de crise. Estes contextos:
- favorecem a emergência de líderes transformacionais, encontrando as determinantes favoráveis à mudança organizacional;
- maximizam a fiabilidade organizacional, estimulando os sistemas a criar formas de lidar com situações inesperadas, potenciando o comprometimento com a resiliência e a relevância da expertise, isto é, a procurar dar as respostas adequadas e soluções fléxiveis, assumidas pelos profissionais de saúde que mostram mais conhecimento e não, necessariamente, pelos que ocupam cargos hierarquicamente superiores;
- promovem a coordenação relacional assente, cada vez mais, em bases de relação informal entre atores, intra e interorganizações, promovendo respostas mais eficazes, onde partilham os objetivos, fomentam o conhecimento recíproco e o respeito mútuo;
- estimulam novas estratégias de comunicação, acentuando a importância e a imprescindibilidade da comunicação, interna e externa, das organizações, mas também na própria prevenção e prestação de cuidados de saúde, para a população em geral e para os utentes das unidades de saúde.
Esta “gigacrise”, impõe novos desafios e exigências acrescidas em termos de Gestão de Serviços de Saúde. Potencia as condições para a mudança e melhoria da Saúde e o desenvolvimento de modelos integrados e flexíveis de valor acrescentado, aproveitando a vantagem coopetitiva dos sectores público, privado e social. Uma mudança assente nos pressupostos de uma gestão estratégica de pessoas, com lideranças transformacionais e que fomente redes colaborativas.
A resposta está na mudança para um SNS mais colaborativo e adaptativo.
[1] Argyris C., Schön D. (1996). Organizational learning II: Theory, method, and practice. Reading, MA: Addison-Wesley
[2] Mintzberg H. (2012). Managing the Myths of Health Care. World Hospitals and Health Services: The Official Journal of the International Hospital Federation, 48(3):4–7.
[3] Nunes, F., Nascimento, G. e Espanha, R. (2020). Comunicação e organização em cuidados de saúde primários em contexto covid19: duas histórias. Cadernos de Saúde Societal – ISCTE-IUL, 1:67-73.