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“Onde o privado tem de ter a primazia é no turismo de saúde”, diz Álvaro Beleza

O secretário nacional do PS pega no tema de um dos dois painéis que compõem a próxima conferência do PS para explicar a visão que pretende para o Estado. Mais referendos, círculos uninominais, limitação de mandatos.

Álvaro Beleza – médico, director do Serviço de Sangue do Hospital de Santa Maria, professor universitário e secretário nacional do PS – organiza este sábado a conferência sobre saúde no âmbito da Convenção Novo Rumo. Ao PÚBLICO, abre a porta sobre as soluções que estão a ser estudadas para o sector. Empurrar os hospitais privados para o turismo de saúde, fundir as entidades reguladoras, transferir os cuidados continuados da Segurança Social para a Saúde e criar fundações públicas que juntem universidades, indústria farmacêutica e laboratórios.

Um dos temas da conferência é “Pacient Empowerment, Devolver o SNS ao cidadão”. O cidadão perdeu o Estado?
O Estado tem que estar ao serviço do cidadão. Os serviços de saúde têm que estar ao serviço dos doentes, por isso é que vamos ter as associações de doentes num dos painéis. Tem que se dar cada vez mais informação aos cidadãos. É o caminho que está a ser seguido no mundo civilizado. Os sistemas de qualidade têm que ser alargados a todo o sistema, obrigando a recorrer a índices de satisfação do utente. Eu dirijo um serviço que tem um implementado há quase 20 anos e é assim que sei onde estão as falhas. Dá mais força às pessoas. E também se está ponderar a possibilidade de haver livre escolha dentro dos serviços públicos pelo utente.

Por exemplo?
Se um médico de família decide que um doente tem que fazer uma endoscopia, o utente, na sua área de residência poderia escolher entre os serviços públicos aquele onde iria fazer o exame. A liberdade é sempre positiva e essa pressão sobre os serviços obriga-os a tratar melhor. Não quer dizer que tratem mal, mas esta coisa dos hospitais terem clientela garantida não incentiva ninguém a melhorar. Há limites: não estou a falar de opção público/privado. Sou absolutamente contra. E dentro da sua área. Já agora, isto tem outra consequência: em parte o investimento seguirá o doente. Estamos a estudar isto.

O orçamento dos hospitais terá em conta o número de pacientes a que ele recorrem?
Também, é um prémio ao mérito… Não podemos ter todo o sistema a viver de regras burocráticas centradas apenas no poder de influência ou no poder político.

Esse conceito seria interessante para aplicar a outras áreas…
Eu pessoalmente concordo com isso. Por exemplo, na reforma do sistema político. Portugal tem que mudar o seu sistema político. Aproximar os cidadãos dos seus eleitos…

Como ensaiaria essa reaproximação com os eleitores?
Com limites de mandatos para todos os órgãos eleitos, com círculos uninominais na Assembleia da República, com um círculo nacional, mantendo a proporcionalidade e a representatividade para os partidos mais pequenos. Não há nenhuma democracia com mais de 50 anos que não tenha círculos uninominais.

E em relação ao número de deputados?
Num país com 10 milhões de habitantes, que é mais ou menos o mesmo que Londres, chega o número que está previsto na Constituição: 180. É melhor ter menos deputados mas com mais meios para cada um deles.

Que são mal vistos na opinião pública…
Já agora, defendo a limitação de mandatos mas, ao mesmo tempo, como acho que a política é uma actividade transitória, tem que se permitir às pessoas que façam política e voltem à sua vida profissional. Defendo a permissão que os deputados exerçam outras actividades profissionais. O Parlamento está cheio de advogados que o são ao mesmo tempo que exercem o mandato. Mas o mesmo não acontece a quem trabalha no sector público…

Existe uma razão: há aí um conflito de interesses, um deputado tem poder de decisão sobre o Estado, se trabalhasse no Estado seria patrão de si mesmo…
Admito isso, mas eu como funcionário… acho que a um médico deve ser permitido poder continuar a trabalhar a tempo parcial, não a tempo inteiro. Porque eu, quando deixar a política, quero voltar a ser médico.

Que mais poderia ser revisto no sistema político?
Eleições primárias e mais referendos. As pessoas têm que ser mais consultadas em questões que lhes toquem directamente. Tem que se cultivar a participação das pessoas nas decisões colectivas…

Mas as pessoas não participam porque sentem que, nas decisões realmente importantes, não são ouvidas?
Daí a necessidade da democracia directa e indirecta. Só assim se pode fazer de cada português político. Não quero uma casta de políticos.

E que adianta isso se depois, perante uma crise económica e financeira séria, se decide um pedido de assistência financeira internacional sem consultar os cidadãos?
Pois, já Salazar dizia que não podia haver democracia porque os portugueses não estavam preparados para ela. Os portugueses estão preparados, e se não estão treinam-se. Tudo farei para transformar Portugal na democracia madura que ainda não é… Ainda é uma democracia infantil.

Se dependesse de si, portanto, antes de ir falar com Angela Merkel sobre a reforma do Estado, ouviria os portugueses?
Para mim, a pior coisa deste Governo é pôr-se de joelhos em Berlim…

José Sócrates fez o mesmo…
Não fez igual, mas…

Merkel soube sempre antes o que Sócrates preparava antes dos portugueses. Antes do principal partido da oposição…
Eu acho que a primeira decisão de um primeiro-ministro – e tenho a certeza que será assim com António José Seguro – nunca poderá ser ir à Alemanha. Irá mais depressa a Penamacor, que é a terra dele, do que a Berlim.

Na conferência vai falar-se de reformas estruturais?
A iniciativa vai ter dois focos fundamentais. O primeiro é debater de que forma a saúde pode contribuir para o crescimento económico. Para o PS, é aqui que está o papel do privado na Saúde. A indústria farmacêutica é essencial para o nosso crescimento. Hoje já contribui mais para as exportações do que o vinho do porto. Temos também o turismo de saúde. É uma área fundamental e, aí sim, é onde o privado tem de ter a primazia. O turismo de saúde é para hospitais privados. E temos de definir metas em relação aocluster da saúde ao ensino, à universidade, à academia, aos laboratórios de investigação portugueses.

Que tipo de cluster?
A investigação de excelência que existe em Portugal é na área da saúde. Todos os prémios que temos recebido, bolsas estrangeiras atribuídas, são na área da saúde. O que falta é arranjar forma de articular melhor a investigação, todo o ensino de saúde e a indústria farmacêutica portuguesa. Para que se ajudem uns aos outros. Arranjar formas de financiamento para a investigação. Financiamento, já agora, que não dependa de estar mais perto ou mais longe do Governo. Porque não queremos que o financiamento aos investigadores ou aos laboratórios esteja dependente dos conhecimentos políticos que se tem ou da cor do Governo que está em funções.

Como?
Através da integração do ensino, indústria, laboratórios em, por exemplo, fundações públicas. Nas quatro grandes cidades que já tem capacidade de investigação – Braga, Coimbra, Porto e Lisboa – permitindo a entrada de capital privado, tanto farmacêutico como dos grandes grupos económicos da saúde. Mantendo a liderança pública do Estado, apostando assim numa investigação orientada para as necessidades dos portugueses. Como nos diabetes ou no cancro colo-rectal.

Como é que se atrai o privado para investimento em que o lucro não é prioridade?
Aí é que tem que surgir liderança capaz de juntar sinergias. A indústria já colabora em parte com laboratórios de investigação e com o ensino.

Porque é que propõem o conceito das unidades integradas?
Vamos à questão da gestão. É preciso articular melhor os cuidados primários, os médicos de família, com os hospitais e outra área que está um pouco à margem, no ministério da Segurança Social: cuidados continuados e paliativos. Porque essa é uma área que vai crescer.

Porquê a necessidade de transferir os continuados da Segurança Social?
Mas essa é a Reforma do Estado! Fala-se muito de reforma mas depois não se concretiza! Temos que juntar o que é igual. Porque é assim que se geram ganhos financeiros e de produtividade. Os apoios ao domicílio têm que ser apoiados e coordenados pelas unidades de saúde familiar e centros de saúde.

E tencionam enfrentar a questão das entidades reguladoras?
Pois, temos o problema da proliferação das entidades reguladoras, ou aliás, instituições que têm funções reguladoras. Na Saúde existem inspecções e auditorias de várias entidades: Entidade Reguladora de Saúde, INFARMED, Direcção-Geral de Saúde, Inspecção-Geral de Saúde, ARS. Que cria, desde logo, um problema de desautorização das próprias. Os serviços acabam por não as levar muito a sério. Temos que encarar uma solução de fusão de várias entidades numa grande entidade reguladora que aproveite o know-how da Inspecção-geral e da ERS que se poderia chamar Autoridade Reguladora de Saúde, com intervenção em todos os serviços. Trazendo também para si todas as funções reguladoras que estão dispersas. Assim é que se poupa dinheiro fazendo melhor.

Porque é que o PS tem insistido tanto na “separação das águas” entre o privado e o público?
Porque em qualquer actividade do Estado ou da economia tem que haver clareza nas situações. E o que acontece é que a política deste Governo, de aumento exagerado das taxas moderadoras, sem ter feito qualquer reforma estrutural que melhorasse o Serviço Nacional de Saúde, e com o aumento das listas de espera, resultou na transferência de doentes do público para o privado. Os portugueses recorrem cada vez mais aos grandes grupos económicos da saúde. Que aliás aumentaram extraordinariamente os seus lucros em 2013. Numa situação de crise e empobrecimento, os portugueses acabam a gastar mais dinheiro para ter cuidados de saúde. Numa situação de crise, os lucros dos privados em saúde aumentam… É uma situação perversa.

Os grupos económicos da saúde lucram com a crise e com este Governo?
É verdade. A política de saúde deste Governo beneficiou os grandes grupos, prejudicou as pequenas actividades privadas da saúde – pequenos consultórios, pequenos laboratórios, farmácias. Os pequenos perderam todos. Os serviços públicos não melhoraram, as dívidas aos fornecedores aumentaram e os doentes ainda gastam mais no privado. Portugal gasta nos serviços públicos 4,7 % do PIB. Está abaixo da média europeia. Portugal gasta 3,5 % do PIB na saúde privada. Está muito acima da média europeia. Espanha gasta 1,2%!

Essa transferência para o privado é negativa porquê?
Porque depois de já pagarmos, com os nossos impostos, um Serviço Nacional de Saúde, gastamos uma segunda vez em seguros privados ou quando recorremos a um hospital privado. E desmotiva os profissionais da saúde.

Essa separação faz-se como?
Por exemplo, do ponto de vista dos profissionais. Só neste sector em que há profissionais a trabalhar no público e privado ao mesmo tempo. O que gera conflitos de interesses. Num determinado hospital, há lista de espera, por exemplo, para endoscopias. Se todos os médicos desse hospital têm actividade privada, é evidente que vai haver aí conflito de interesses. Porque, ainda por cima, alguma dessa actividade é em instituições privadas que têm convenções com o Estado. E já agora, importa dizer que a exclusividade também ajuda ao emprego. Porque se eu tenho um enfermeiro a ocupar três lugares – no público, no privado e no semi-privado – há dois enfermeiros que ficam sem esses postos.

E como é que isso se concretiza?
Obviamente, o SNS terá que começar por contratar os mais jovens em dedicação exclusiva. Não vamos prejudicar os profissionais que já têm a sua vida organizada. E depois, isso também se aplicará a todos os directores clínicos, de serviço, quem está na liderança das instituições públicas.

Mas isso não poderá afastar os melhores do SNS?
Terá de haver contrapartidas… Uma será financeira. Mas há outras. A projecção da sua vida profissional. O SNS tem, em capacidade instalada, os melhores serviços de áreas de excelência: cirurgia cardíaca, transplantes, áreas laboratoriais, imagiologia. Os melhores equipamentos estão em hospitais públicos! Portanto, interessa aos melhores estarem no Estado. Permanecem pelo prestígio, pela capacidade de progressão e formação. Nenhum grande cirurgião ficaria num hospital central a ganhar menos de dois mil euros se não tivesse vantagens nisso… (risos) E a dedicação total é essencial porque a capacidade instalada do Estado, nomeadamente em grandes hospitais, não está aproveitada ao máximo. E isso pode fazer-se com as condições financeiras que existem. Não é preciso gastar mais do que se gasta agora. O problema actual é que o Estado está a pagar os serviços públicos e a pagar lucros privados.

Cortando nas verbas pagas ao privado?
Uma parte do que se paga agora, sim. As convenções com o privado continuarão quando se entender que são complementares ao que o serviço público fornece.

Acha que se está a exagerar nessas convenções?
Acho. Nas grandes cidades há uma sobre-capacidade instalada do Estado. E ao lado paga-se a privados para fazer exactamente a mesma coisa, ou coisas que os grandes hospitais podiam assumir: análises clínicas, gastroenterologia, endoscopia.

Fonte: Público, 21 de Março de 2014

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