São todos jovens médicos, com menos de 35 anos, e fazem trabalho no serviço de urgência. A diferença está apenas no horário: enquanto uns cumpriram turnos das 8h às 20h outros foram escalados para trabalhar 24 horas seguidas ou, pelo menos, para fazer todo o período nocturno – o que implicou privação do sono. Os efeitos desta falta de descanso traduziram-se numa menor concentração, capacidade motora e de reacção, alerta um estudo publicado na revista Acta Médica Portuguesa, que submeteu os profissionais a vários testes após o trabalho nas urgências.
“Qualquer pessoa que faz urgência em período nocturno sente perfeitamente as limitações com que fica no pós-noite, mas não havia nada estudado sobre o efeito da privação de sono nos médicos portugueses”, explica uma das autoras do trabalho, a pneumologista do Hospital Geral do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra Inês Sanches. O estudo foi feito no âmbito do mestrado integrado em Medicina e, segundo a clínica, uma das limitações está no tamanho da amostra. Foram apenas incluídos 18 médicos com idades entre os 26 e os 33 anos e divididos em dois grupos, consoante o horário praticado. A escolha recaiu sobre médicos mais novos para evitar diferenças de desempenho provocadas apenas pela idade.
Inês Sanches assegura que os resultados permitiram encontrar discrepâncias significativas. O sono dos participantes foi monitorizado com o auxílio de um actígrafo, um aparelho semelhante a um relógio que permite perceber as horas de repouso efectivo e a qualidade do sono. Logo aqui houve contrastes: o grupo sujeito a trabalho nocturno só conseguiu dormir cerca de três horas nesse dia, enquanto o outro grupo chegou às seis horas e meia. Mesmo ao longo da semana inteira, os médicos no turno da noite registaram sempre menos horas de sono, apesar de se tentarem fazer mais sestas.
“Muitas vezes fazemos noite e geralmente ainda vamos trabalhar no dia a seguir. Mas mesmo quando se vai para casa a rotina da sociedade é diurna e o sono nunca tem a mesma qualidade. Acabamos por estar a semana toda a tentar ajustar os relógios”, refere Inês Sanches. Além da monitorização do sono, o estudo submeteu também os participantes a vários testes escritos e em computador. “Tive colegas a responder a questionários que se deixavam dormir. Notava-se perfeitamente quem tinha feito um sono descansado mesmo sem ver os resultados”, descreve.
Em relação aos testes, Inês Sanches explica que foi pedido aos médicos que realizassem algumas actividades monótonas como identificar num papel símbolos que lhes tinham sido mostrados. Tiveram também de cumprir ordens simples num computador, como virar para a esquerda e para a direita. Foi ainda pedido que interpretassem o significado das cores dos semáforos, tomando a decisão de avançar, abrandar ou parar. “No grupo com privação de sono as actividades monótonas tiveram resultados francamente diminuídos. Mesmo os que tentaram fazer o teste com mais calma erraram mais. No estudo que avaliou a capacidade de entender instruções, como virar para a esquerda ou para a direita, houve muita limitação. E isso tem impacto sobretudo nos cirurgiões que a operar em conjunto podem cortar o lado errado”, reforça a médica.
A autora do estudo lembra, ainda, que os riscos não são exclusivos das actividades no hospital. “Os médicos depois de um turno com privação de sono têm de ir para casa. Vão conduzir e passar por sinais de trânsito, área onde também mostraram limitações. Não há só limitação da segurança do profissional e do doente no local de trabalho, há aumento do risco de acidentes de viação”, sublinha.
O cansaço dos médicos foi precisamente o tema de uma tese de mestrado da Faculdade de Medicina de Lisboa recentemente divulgada, que indicava que mais de 15% dos clínicos avaliados num estudo exploratório estavam emburnout – síndrome que se caracteriza por elevados níveis de exaustão emocional, despersonalização ou perda de realização pessoal.
A amostra avaliada por Sara Ferreira, na tese intitulada “Burnout e a empatia médico-doente”, era de 104 médicos de hospitais da Grande Lisboa e, ainda que não fosse representativa, permitiu perceber que são precisamente os médicos mais novos que exibem níveis mais elevados de burnout quando comparados com os seus colegas já especialistas, o que se justificará sobretudo com o excesso de carga horária, nomeadamente no serviço de urgência.
Também a Ordem dos Médicos tem vindo a alertar para os ricos destas rotinas a que são sujeitos os profissionais de saúde. “Os efeitos da privação de sono são conhecidos e reduzem a capacidade de resposta dos médicos. Por isso anunciámos a intenção de proibir a realização de períodos de urgência de mais de 12 horas seguidas aos internos, que são coagidos a trabalhar assim mesmo quando reportam dificuldades físicas”, afirma o bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva.
O bastonário reconhece que estes estudos “reforçam a preocupação” da Ordem. “Se os dados fossem recolhidos agora os resultados seriam ainda piores, pois nos últimos anos temos assistido a uma grande degradação das condições de trabalho nas urgências e a cortes nas equipas”, observa. O médico considera, também, que a formação dos internos fica comprometida com estes horários. “Há uma limitação da formação porque o sono é necessário para consolidar as informações novas que recebemos”, corrobora Inês Sanches.
Fonte: Público, 21 de setembro de 2015