No lar temporário onde vivem 20 crianças em risco, Rodrigo, de quatro anos, é o único que hoje ficou na sala de brincar. Está estendido num dos vários colchões coloridos, onde vai fazendo ligeiros movimentos em que flecte as pernas, os braços e as mãos, emite sons que quase não se ouvem. Rodrigo não ouve, não fala, não vê, não anda, chega a ter 20 convulsões por dia. A família deixou-o no hospital quando ele nasceu e lá viveu dois anos. Foi ele a razão que fez a Ajuda de Berço avançar para o projecto de construção de uma casa para crianças com deficiências profundas e doenças crónicas graves que são abandonadas nos hospitais, conta a directora da instituição, Sandra Anastácio.
Rodrigo vive há dois anos no lar temporário da Ajuda de Berço, em Lisboa, mais nenhuma instituição de acolhimento o quis aceitar. “Rodrigos como ele há muitos em Portugal. Não se fala dos Rodrigos. Ninguém os aceita porque vão morrer passado pouco tempo”, diz Sandra Anastácio.
Ao longo dos seus 17 anos de existência, a Ajuda de Berço, que é uma instituição particular de solidariedade social, recebeu cerca de 20 crianças abandonadas com problemas de saúde graves. Durante um ano recebe “seis a oito pedidos da Segurança Social para receber este tipo de meninos” mas não pode aceitar mais do que quatro. “Ninguém quer assumir um menino como o Rodrigo”, que não tem diagnóstico mas tem “um quadro de paralisia cerebral”. “O que é este menino para o Estado português? Nada”, diz.
Dos 20 meninos que passaram pela instituição “dois morreram connosco, um voltou para a família biológica, alguns foram encaminhados para lares da Segurança Social.” “Eu desejo que todos os meninos tenham projectos de vida” mas há que ser realista, diz a responsável, “são crianças com poucas possibilidades de vir a ter uma família de adopção”.
Quando a casa existir, espera-se que a construção arranque em 2017, Rodrigo deverá ser o primeiro dos seus 16 habitantes. Serão precisos 2,5 milhões de euros, para já foi possível reunir apenas 30% das verbas e, por isso, a organização vai avançar com uma campanha de angariação de fundos. A casa ficará num terreno cedido pela Câmara Municipal de Lisboa, estando para aprovar o projecto de arquitectura. O objectivo é estar concluída em 2019.
Neste lar de acolhimento temporário da Ajuda de Berço, em Lisboa, as funcionárias trabalham por turnos. Há uma folha A4 por criança que informa a colega do turno seguinte, se cada criança comeu bem, se teve alguma queixa. Para a maioria dos bebés as fichas são simples, a maior parte estão assinaladas com um x na opção “comeu tudo”.
As fichas de Diana e Sofia são diferentes, os seus dias não são iguais aos das outras crianças. Como não têm capacidade para engolir, todas as refeições são dadas através de uma sonda no estômago e são aspiradas com sonda três vezes por dia. No período de sesta são ligadas a um ventilador. Têm 18 meses mas começaram a sentar-se há pouco tempo e estão agora a tentar aprender a andar, com a ajuda de talas nas pernas. São irmãs e viveram as duas durante um ano numa enfermaria de um hospital da Grande Lisboa, têm uma doença neuromuscular grave.
O que Rodrigo, Diana e Sofia têm em comum é o facto de terem problemas de saúde incapacitantes e famílias com graves problemas sociais, diz Sandra Anastácio. Rodrigo é filho de uma relação incestuosa, uma família pobre de dois irmãos que continua a ter filhos, “uns morrem, outros sobrevivem alguns são saudáveis, é uma roleta russa, às vezes sai um saudável”. Perderam-lhe o rasto, nunca visitaram Rodrigo, diz a responsável.
As irmãs Diana e Sofia são visitadas pela família com alguma regularidade mas Sandra Anastácio acredita que “estes pais nunca vão ter capacidade para ficar com elas”.
Medo que “me morra nos braços”
A Ajuda de Berço tem ainda um outro caso, de um menino de dez anos com um problema de saúde menos grave, Spina Bífida, uma malformação congénita e que, neste caso, significa que precisa de ser algaliado várias vezes por dia para esvaziar a bexiga e move-se numa cadeira de rodas.
Estas são crianças que “permanecem nos hospitais porque precisam de cuidados específicos que muitos lares de acolhimento se recusam a dar”. Só que estes são meninos muito frágeis que estão com meninos saudáveis, “apanham tudo o que é possível num centro de acolhimento temporário”.
Sandra Anastácio diz que eles, Ajuda de Berço, não estão vocacionados para prestar cuidados de saúde, fazem-no porque “tem de ser” e porque são uma instituição católica. Recebem formação do hospital, mas há alturas em que entram em pânico. O Rodrigo tem convulsões, às vezes várias vezes por dia, e há alturas em que perde consciência. E lá vão elas para o hospital. “O Rodrigo já esteve várias vezes para partir.”
A frase mais repetida por funcionárias que trazem estes meninos ao Hospital de Santa Maria, em Lisboa, é “‘tenho medo que me morra nos braços’. É repetida até à exaustão”, diz a assistente social do Departamento de Pediatria da instituição, Laurinda Almeida.
“São poucos casos mas marcam”, diz Laurinda Almeida. Tiveram uma menina que nasceu na neonatologia da unidade e viveu no hospital durante oito anos, na pneumologia, porque tinha de receber ventilação e nenhuma instituição de acolhimento estava disposta a recebê-la, mesmo havendo ordem do tribunal para a sua institucionalização, lembra Laurinda Almeida. Foi uma reportagem na televisão fez com que aparecesse uma família que a adoptou há cerca de três anos.
Ana Lacerda, coordenadora do grupo de trabalho para a implantação de uma rede nacional de cuidados continuados pediátricos, admite que estes casos existem e são um problema. “Chegam a viver anos nos hospitais não têm para onde ir. São residuais mas é preciso dar-lhes reposta”, sublinha. Quantos serão? “Não sei se alguém terá esse número”, diz. Questionada pel PÚBLICO, a Segurança Social também não forneceu quaisquer dados sobre este tipo de situações.
A directora do Departamento de Pediatra do Hospital de Santa Maria, Maria do Céu Machado, constata que se anda sempre a falar “dos números fantásticos da mortalidade infantil em Portugal” mas que se fala pouco do reverso da medalha. “Salvamos a vida a crianças com situações clínicas e doenças graves que de outra forma não sobreviveriam. Estamos aqui a salvar vidas para criar um problema enorme de desestruturação. Temos de dar o passo a seguir”, avisa.
Em causa estão por exemplo crianças que tiveram asfixias graves ao nascer e ficaram com lesões cerebrais, situações de sequelas que resultaram de grande prematuridade, doenças genéticas, cardiopatias, doenças musculares, elenca a pediatra.
“Muitas instituições de acolhimento não estão preparadas para as ter” e lembra o caso de um menino que era internado de três em três dias “por ansiedade dos cuidadores”. Por isso é urgente a criação de cuidados continuados em pediatria, diz a médica. “Às vezes conseguimos colocá-los em instituições sem vocação de cuidados continuados e voltam para ser reinternados”.
Seria fácil dizer que estas são famílias insensíveis e é delas a culpa por deixarem estas crianças nos hospitais. “Há famílias que não sabem o que é dormir uma noite inteira há cinco, há 15 anos”, diz a pediatra Maria do Céu Machado. “Uma doença ou deficiência deste tipo desorganiza qualquer família, por mais funcional que fosse desde o início, acabam casamentos, muitas vezes começam os dois e termina só a mãe”, acrescenta Laurinda Almeida,que lembra: “um dos membros do casal acaba no desemprego para tomar conta a tempo inteiro das crianças, os irmãos saudáveis acabam muitas vezes por ser negligenciados e também precisam de apoio.”
“Estas são crianças que obrigam a faltar ao trabalho, que têm muitos custos. Há famílias com outros filhos que assumem que não têm condições físicas, psicológicas e monetárias. Não quer dizer que a mãe depois não vá ver a criança à instituição”, diz ainda a pediatra Maria do Céu Machado. Porque, acredita, “a maior parte das famílias que abandonaram é porque não têm condições para as ter. O abandono ou não depende muitas vezes dos apoios que existem na comunidade.”
Os nomes das crianças são fictícios
Fonte: Público, 04 de Maio de 2015