Serviço Nacional de Saúde comemora hoje o 35.º aniversário, com as questões da sustentabilidade e redução da despesa a assumirem uma centralidade que a crise agudizou.
Graça Condado, 57 anos, assistente operacional. Jorge Rebelo, 60 anos, enfermeiro. João Cabral Fernandes, 68 anos, psiquiatra. No dia em que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) completa 35 anos, estes três profissionais contam ao PÚBLICO os seus percursos, com coisas em comum: trabalham há mais de três décadas em unidades públicas de saúde e sentem que, sobretudo nos últimos dez anos, o SNS assistiu a uma travagem no seu caminho de sucesso. Falam numa desorçamentação com efeitos no terreno que, aliada à transferência de competências para o sector privado, “arrasou o SNS”, resume Cabral Fernandes. Sinal disso tem sido o crescimento da despesa em saúde suportada directamente pelas famílias e que já representa 34% do total – ainda que com uma inflexão de tendência em 2013.
No ano passado, a despesa corrente (pública e privada) em saúde caiu 2,1%, mas foi um decréscimo inferior ao registado em 2012 ou 2011. A despesa total ficou-se nos 15.284 milhões de euros, o que corresponde a 8,9% do Produto Interno Bruto (PIB) de Portugal, segundo os dados da Conta Satélite da Saúde agora divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). Desagregando este valor, 66% corresponde a despesa financiada pelo sector público e 34% a despesa privada, o que, de acordo com os dados da OCDE, coloca o país com valores próximos da década de 1980, quando o SNS ainda se estava a consolidar.
A diferença de 2013 em relação aos anos anteriores é que se verificou uma ligeira mudança na tendência da despesa privada em saúde, com as famílias a gastarem um pouco menos, já que a factura do Estado subiu 0,6%. Mesmo assim, em 2010 a despesa pública ficava-se nos 70%, pelo que esta diferença, segundo o INE, traduz “o impacto das medidas políticas gerais de contenção da despesa pública, adoptadas nesses anos”.
Hoje, os 35 anos do SNS vão ser assinalados com uma cerimónia na Reitoria da Universidade Nova de Lisboa, que contará com a presença do primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, do ministro da Saúde, Paulo Macedo, e de várias personalidades do sector, que ao longo do dia vão recordar a história de sucesso do SNS de olhos postos nos desafios futuros – com a sustentabilidade e a despesa como temas centrais. O dia será também marcado por uma homenagem ao “pai” deste projecto, António Arnaut, autor do despacho de 1978 que abriu as portas à criação do SNS um ano depois, quando o fundador do PS tinha a pasta dos Assuntos Sociais no governo de Mário Soares.
Na altura, Graça ainda não estava no mundo da saúde, mas entrou para o Hospital de Faro, no Algarve, quase a seguir, em 1981. Há quase 34 anos neste estabelecimento, diz que “a profissão de assistente operacional mantém-se a mesma”. “O nosso trabalho é colaborar com o enfermeiro e com o doente na higiene e nos exames, nas deslocações nos serviços, na alimentação… Temos as mesmas funções, mas menos condições de trabalho porque há menos recursos humanos. Tínhamos mais tempo para estar com o doente e para fazer o serviço com mais qualidade”, descreve Graça, que trabalha há largos anos na unidade de cuidados intensivos. Quais as principais diferenças que encontra em 30 anos? “Nós entrávamos e tínhamos a ideia de que havia uma carreira profissional e isso incentivava as pessoas. Tínhamos objectivos a alcançar. Agora, as pessoas entram e sabem que aquilo que ganham é aquilo com que ficam”, explica a assistente operacional, para quem a rotatividade de pessoal também contribuiu para se “perder a ideia de trabalho em equipa” numa zona do país onde surge cada vez mais oferta privada.
Estes são precisamente alguns dos problemas identificados numa análise do percurso de 35 anos do SNS por Adalberto Campos Fernandes, professor da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa. Campos Fernandes salienta que o SNS representa “um dos compromissos maiores do Estado democrático”, contribuindo “não apenas para a melhoria global dos indicadores de saúde” mas, sobretudo, para a “concretização de importantes objectivos de equidade, no acesso a cuidados de saúde de qualidade, num quadro de respeito pelos valores da solidariedade e da coesão social e, consequentemente, de justiça social”.
Contudo, o também médico e antigo presidente da administração do Hospital de Santa Maria e do Hospital de Cascais aponta algumas falhas que podem comprometer os resultados alcançados, como a “confusão” que houve “entre desperdício, fraude e subfinanciamento”, que, alega, tem prejudicado o acesso, o funcionamento e a motivação dos profissionais, o que se reflecte em dados como a substituição da despesa pública pela privada. O especialista admite que fazia falta a “racionalização da despesa pública com medicamentos” e um “maior enfoque no adequado uso dos recursos disponíveis”. Porém, lamenta que o caminho tenha continuado a passar pela excessiva centralização dos cuidados e recursos, com um mapa ainda dominado por hospitais, ao mesmo tempo que a cobertura da população por médico de família permanece insuficiente.
Fonte: Público, 15 de Setembro de 2014