Autores: José Lima, e pela Enfermeira Sandra Magalhães, ambos Enfermeiros no ACeS de Gondomar (Enfermeiros no ACeS de Gondomar)
Resumo
Este trabalho tem como objetivo sistematizar um conjunto de evidências científicas apresentadas em artigos internacionais que identificam os principais problemas relativamente às desigualdades no acesso aos cuidados de saúde primários em contexto de pandemia covid-19. Estamos a viver uma pandemia global sem precedentes, mas não estamos todos no mesmo patamar. As desigualdades determinam a forma como cada setor na saúde é atingido pelo novo coronavírus. Os baixos salários dificultam o acesso aos cuidados, a necessidade de redimensionamento das equipes de saúde, a escassez de Equipamentos de Proteção Individuais (EPIs) entre outros fatores influenciam a forma como o SNS nomeadamente os cuidados de saúde primários estão a dar resposta aos utentes do SNS.
Palavras-chave: Pandemia; COVID-19; Desigualdades; Saúde
Os cuidados de saúde primários (CSP) assumem-se como o pilar do Serviço Nacional de Saúde (SNS). A existência de um SNS saudável foi determinante para assegurar uma resposta eficaz, com a articulação e comunicação ágil, ao nível dos vários níveis de cuidados e estruturas organizacionais. A 11 de Março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) classificou a infeção provocada pelo vírus SARS-CoV-2 como pandemia mundial. Em Portugal, perante esta situação de calamidade pública, o Presidente da República decretou o Estado de Emergência Nacional
Segundo dados da Comissão Europeia (2019) e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE, 2019), o total da despesa em saúde e a despesa pública em percentagem do produto interno bruto (PIB) têm vindo a cair na última década em Portugal. O relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) Healthy, prosperous lives for all: the European Health Equity Status Report 3 , publicado em setembro de 2019, analisou 33 países e concluiu que apenas em 4 países esta despesa diminuiu e, entre eles, Portugal surge em 2017 com menos de 0,2% do PIB investido em promoção da saúde e prevenção da doença.
Portugal é um país com profundas desigualdades económicas e sociais. A
desigualdade no acesso aos Cuidados de Saúde Primários é uma das vertentes
dessa desigualdade.
Estima-se em mais de um milhão o número de utentes sem médico de família em
Portugal, estando cerca de 40% localizados na área geográfica da Administração
Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo. As Unidades de Saúde Familiar,
apesar de serem uma peça importante na melhoria dos Cuidados de Saúde
Primários, não vão dar resposta, a curto prazo, à falta de médicos de família.
É de salientar o envolvimento dos Cuidados de Saúde Primários, a sua célere adaptação às circunstâncias, adotando diferentes procedimentos, em constante readaptação, com o objetivo de garantir uma resposta adequada, atempada e articulada, para salvaguardar a manutenção da saúde pública e a preservação dos direitos fundamentais dos cidadãos.
No entanto, a urgência de orientação para doentes Covid-19 relegou para segundo plano os demais doentes, onde a atividade assistencial dos CSP padeceu de uma drástica redução. No primeiro semestre, o número de consultas médicas diminuiu cerca de 1 milhão segundo o Ministério da Saúde, ou 3 milhões conforme a Ordem dos Médicos, face ao período homólogo. No geral, as consultas médicas presenciais diminuíram 36% e, as consultas não presenciais aumentarem 63%, conquistando assim um novo posicionamento (informação do portal da transparência do SNS)
Os dados divulgados pelo Movimento Saúde em Dia, liderado pela Ordem dos Médicos (OM) e pela Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH), revelam também uma diminuição de 3,6 milhões nos contactos presenciais de enfermagem nos centros de saúde (menos 18%) que juntamente com as consultas médicas totalizam menos 11,4 milhões relativamente a 2019.
A análise feita pela consultora MOAI, a partir dos números oficiais do Portal da Transparência do SNS, indica igualmente uma “quebra acentuada” nos cuidados médicos presenciais nos hospitais, com menos 3,4 milhões de contactos em 2020, entre consultas, cirurgias e urgências.
Os episódios de urgência reduziram-se 31%, as consultas externas 11% e as cirurgias 18%, refere o movimento, apontando o mesmo panorama nos meios complementares de diagnóstico e terapêutica, onde só há dados disponíveis até final de novembro de 2020.
“Ainda assim, globalmente, foram realizados em 2020 menos um quarto dos exames e análises”, o que se traduz em menos 25 milhões de atos realizados. Só na Medicina Física e de Reabilitação foram menos 12,4 milhões.
Um estudo internacional designado por “inSIGHT”, , coordenado pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto , e liderado pelo Institute of Global Health Innovation (Reino Unido), concluiu, tendo por base o testemunho de 1.500 médicos de família, que a pandemia “agudizou” as desigualdades no acesso aos cuidados de saúde.
Este estudo teve também como objetivo “avaliar as perspetivas” dos médicos de família sobre a utilização das tecnologias digitais nos cuidados de saúdes primários imposta pela pandemia da Covid-19.
Quase metade dos médicos considerou que houve um efeito negativo na agudização de desigualdades de acesso por parte de determinados grupos, referindo que alguns grupos da população terão sido excluídos, nomeadamente os idosos e os que têm menor literacia digital ou menor tendência para usar estas tecnologias, mas os determinantes de exclusão poderão ser mais, e mais complexos, do que previam.
No entanto os resultados obtidos com este estudo já motivaram a realização de outro, e que tem como objetivo “avaliar as perceções dos próprios doentes sobre a transição digital durante a pandemia da Covid-19”, pois é fundamental ouvir os doentes, que são os utilizadores finais” da experiência da telemedicina
O novo paradigma do teletrabalho, levou a outro problema, o isolamento social, que fez com que alguns serviços públicos estivessem apenas acessíveis online.
O acesso às compras online tornou-se para muitos, principalmente para a população mais vulnerável, uma opção forcada.
Esta transformação digital veio expor um dos maiores desafios desta década – a exclusão digital. Por exemplo, mais de 20% da população Portuguesa encontra-se excluída do mundo digital.
As razões para a exclusão digital prendem-se principalmente com os seguintes fatores:
Falta de acesso a internet. Isto reflete maioritariamente as desigualdades socioeconómicas e a variação da qualidade das infraestruturas a nível regional;
a falta de competências tecnológicas que impedem o uso das tecnologias, como o telemóvel ou o computador. Este tipo de exclusão afeta desproporcionalmente a população idosa, aqueles socialmente mais isolados ou vulneráveis e as mulheres;
a falta de competências digitais que permitam tirar a máxima utilidade do uso das plataformas digitais, a qual esta também fortemente associada com os fatores mencionados acima, assim como o nível de escolaridade.
No que diz respeito à saúde (e à economia da saúde), a pandemia da Covid-19 veio alterar completamente a realidade dos cuidados de saúde, principalmente dos cuidados primários. O distanciamento social e o sobre carregamento do serviço nacional de saúde impostos pela pandemia levaram a uma transição das consultas presenciais para teleconsultas, e um aumento do uso de outras ferramentas digitais. Se por um lado a digitalização dos serviços de saúde poderá permitir uma maior eficiência do sistema e facilitar a prestação de cuidados de saúde, por outro lado, o impacto desta na saúde da população é pouco claro.
A Intensificação da digitalização dos serviços de saúde é a possibilidade de a exclusão digital exacerbar as desigualdades na saúde. Na realidade, os segmentos da população que tem uma maior probabilidade de serem afetados pela exclusão digital, tem também um maior risco de problemas de saúde, nomeadamente a população idosa, mais desfavorecida, socialmente isolada e com menor nível de escolaridade. Isto é particularmente preocupante porque a Covid-19 tem afetado a população de forma desigual, verificando se uma maior incidência nestes mesmos grupos da população. Adicionalmente, estes indivíduos são também aqueles a quem o autoisolamento foi particularmente recomendado, e que na prática mais precisariam das ferramentas digitais, por exemplo, para procurar cuidados de saúde mental.
Neste contexto, estratégias no sentido de aumentar a inclusão digital podem ajudar a melhorar o acesso a cuidados de saúde primários, e por sua vez a reduzir as desigualdades na saúde. Para além de estratégias nacionais direcionadas ao aumento do acesso e da qualidade da internet e formação digital, destaco duas áreas que merecem especial atenção na área da saúde. A curto prazo, a prioridade deverá centrar-se num conjunto de medidas que aliviem o impacto de uma maior digitalização dos serviços de saúde nos segmentos mais vulneráveis da população. Estes poderão incluir a disponibilização de linhas gratuitas de apoio a saúde, ou acesso gratuito (sem custos de dados) a websites relacionados com serviços de saúde, como por exemplo o portal SNS24.
A longo prazo, o sistema de saúde pode (e deve) adotar um papel mais cativo no apoio a população excluída do mundo digital. Por exemplo, através de programas de formação dos profissionais de saúde de modo a integrarem e apoiarem de forma mais efetiva os pacientes no uso de serviços de saúde digitais. Outro exemplo seria incluir a ‘prescrição’ de programas digitais no seio da comunidade que complementem os cuidados primários (em linha com o modelo de prescrição social popular em alguns sistemas de saúde Europeus), por exemplo, sessões de apoio ao acesso e uso de serviços de saúde digitais. Estas medidas tendem a ter um maior impacto quando tomadas em conjunto com estratégias de combate a exclusão social levadas a cabo pelo sistema social e governos locais.
Fatores socias e desigualdades
A influência de fatores sociais no contágio de doenças e no estado de saúde das pessoas é bem conhecida. Há atividades que simplesmente não podem ser exercidas à distância e que a segurança dos trabalhadores depende tanto dos seus comportamentos individuais, como da qualidade das medidas preventivas asseguradas pelas entidades empregadoras.
A precariedade laboral e os baixos salários também dificultam a gestão dos contágios devido ao medo de despedimento ou de não renovação de contratos e aos casos de multi-trabalho em que as pessoas acumulam atividades, muitas vezes por via informal, para compor o seu rendimento.
Aquilo que se chama a cumulatividade dos fatores de desigualdade social. Ou seja, que existem diversos atributos que produzem desigualdades sociais (por exemplo, a idade, o género, a escolaridade, a rede familiar, de amigos e de conhecidos, etc.) e que esses atributos se condicionam mutuamente.
Pessoas com escolaridade mais baixa tendem a ter rendimentos mais baixos, atividades laborais de maior risco para a saúde, uma rede de apoio menos eficaz para auxílio em caso de necessidade, menor capacidade de compreender a informação
Em contrapartida, pessoas com escolaridade mais alta tendem a ter rendimentos mais altos, atividades laborais de menor risco para a saúde, uma rede de apoio mais eficaz e maior capacidade de compreender a informação. Nos meses de março e abril percebeu-se que as pessoas com menor rendimento foram as que mais perderam rendimento e que mais foram expostas ao vírus (Barómetro Covid-19, 2020).
À luz da cumulatividade dos fatores de desigualdade social é de esperar que estas pessoas sejam também aquelas com piores condições de saúde, que mais precisam de se expor ao vírus (por exemplo, não podendo optar pelo trabalho à distância ou tendo que utilizar espaços públicos, incluindo os 3 transportes) e que têm maior dificuldade para filtrar as boas e más informações sobre este vírus. Nos meses mais recentes tem havido uma alteração do perfil sociodemográfico dos contágios. Ocorrem crescentemente em pessoas mais jovens. Neste momento é este facto que explica que o aumento de novos casos não esteja a levar ao aumento de internamentos e de óbitos. Por norma, o vírus é assintomático ou causa sintomas ligeiros à esmagadora maioria das pessoas que não têm outras doenças. Mas esta alteração veio reacender um debate que tem na sua essência uma forma de desigualdade social. Esta uma desigualdade motivada pela idade.
Os dados preliminares parecem indicar que a infeção por Covid-19 é marcadamente desigual, afetando de forma mais acentuada os concelhos e países que já têm um perfil socioeconómico mais precário e podendo mesmo exacerbar as vulnerabilidades socioeconómicas pré-existentes ao nível individual.
Segundo se sabe, a pandemia do Covid-19 teve início em dezembro de 2019 na cidade de Wuhan, na China, tornando-se rapidamente numa ameaça global com proporções que eram dificilmente imagináveis para a maioria de nós há apenas alguns meses. Mas, ao contrário ao que se podia pensar inicialmente, a Covid-19 não se apresenta como uma ameaça igual para todos.
Até agora ainda não foi possível perceber completamente em que medida a carga social e económica, originada pela própria infeção ou pelas consequências das medidas tomadas pelos países para proteger as suas populações, apresentam um padrão social. No entanto, embora a evidência sobre as desigualdades na pandemia seja ainda incipiente, as diferenças sociais eram expectáveis por aqueles que estudam as desigualdades socioeconómicas em saúde.
Sabe-se, há muito, que não só existem diferenças sistemáticas de saúde entre as pessoas que estão em posições opostas na hierarquia social, mas que a saúde piora a cada degrau que se desce nesta hierarquia.
Assim, no contexto da pandemia por Coronavírus, é igualmente expectável que esta também não esteja igualmente distribuída. E, de facto, as primeiras suspeitas desta padronização social começaram a surgir nos Estados Unidos da América, onde os dados demonstram a existência de diferenças raciais nos casos e na mortalidade por Covid-19.
De uma forma geral, as desigualdades podem surgir em fases distintas da doença: na infeção, no diagnóstico (e por vezes no tratamento) e no resultado (por exemplo a sobrevivência). Tomando o exemplo das diferenças no risco de infeção, as condições de vida adversas são, desde sempre, associadas à prevalência de doenças infetocontagiosas. Locais com maior densidade populacional, pela maior sobrelotação das habitações e dependência do uso de transportes públicos lotados, tornam mais difícil o distanciamento entre as pessoas, aumentando assim o risco de transmissão de vírus. Também as pessoas que vivem institucionalizadas em lares de idosos ou prisões, podem estar em risco acrescido de infeção, pelo confinamento em espaços mais reduzidos e partilhados com muitas outras pessoas.
A falta de compreensão em algumas camadas populacionais sobre a forma como se propaga a doença, pode dificultar a implementação ou adoção das medidas propostas pelos governos para combater a pandemia, como o cumprimento adequado da etiqueta de higiene, ou o uso apropriado de equipamentos de proteção. Mesmo a avaliação da necessidade de distanciamento social pode ser Comprometida por um menor nível de literacia, o que pode justificar algumas fugas ao confinamento obrigatório, decretado no seguimento de confirmação de casos positivos ou suspeita de contactos com casos positivos.
O
rendimento é condição necessária para o acesso a melhores condições de
habitabilidade, com adequada rede de abastecimento de água e de esgotos que,
por sua vez, são essenciais à higienização pessoal, necessária para diminuir a
exposição à infeção. A precariedade no trabalho, remuneração desadequada face
ao custo de vida e a dificuldade de acesso a apoios sociais podem impedir que
as pessoas se resguardem mais nas suas habitações, para se protegerem do
vírus. Trabalhos que não podem ser realizados à distância (teletrabalho), ou a
necessidade de continuar a fazer pequenos trabalhos para garantir a subsistência
a curto prazo, sujeitam as pessoas a uma maior exposição à infeção.
O acesso aos cuidados de saúde pode estar igualmente a influenciar o número de
casos confirmados, simplesmente porque a maior acessibilidade aos serviços de
saúde pode significar também um maior número de testes efetuados.
Conclusões
A pandemia da COVID-19 constitui um ponto de inflexão social e político, obrigando os sistemas de saúde a uma profunda redefinição. Este acontecimento veio demonstrar a centralidade do Serviço Nacional de Saúde e a indispensabilidade dos seus serviços, ao mesmo tempo que se regista o maior desafio a que alguma vez foi sujeito, desde a sua criação em 1979, na medida em que a COVID-19 é um desafio sem precedentes. Não propriamente em termos da gravidade da doença, mas em termos das respostas organizadas em cada nação.
Contudo, e apesar das dificuldades na capacidade e no acesso aos testes de diagnósticos, na carência de equipamentos de proteção individual (EPI) e na falta de material diferenciado, a rede assistencial soube adaptar-se à necessidade de estabelecer circuitos diferenciados para manter a prestação dos melhores cuidados a todos os doentes, aos infetados com o novo vírus, mas também a todos os outros “com as doenças que sempre existiram”
É urgente tomar medidas para resolver a situação dos utentes sem médico de família. Alguns países europeus, confrontados com o mesmo problema, conseguiram uma solução de qualidade valorizando o papel dos enfermeiros, delegando-lhes várias áreas da prevenção e da vigilância de doenças crónicas. Isto permitiu o aumento da dimensão das listas dos médicos de família sem acréscimo relevante da carga de trabalho e mantendo a qualidade da prestação de cuidados.
Bibliografia
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