Carta Aberta ao Dr. Miguel Sousa Tavares
30 de março de 2014
“Caro Dr Miguel Sousa Tavares,
Fiquei surpreendido com as suas declarações à SIC sobre a falta de médicos e com os seus comentários depreciativos sobre a Ordem dos Médicos.
Aliás, fiquei duplamente surpreendido, porque o Dr Miguel Sousa Tavares afinal não sabia que faltam 500 Médicos de Família em Portugal (até é um pouco mais do que isso), o que significa que está extraordinariamente afastado da realidade e dos problemas da Saúde em Portugal, mas, não obstante essa confessada falta de informação, comenta tranquilamente a referida notícia e qualifica criticamente as posições da Ordem dos Médicos, mesmo desconhecendo completamente o seu teor, informado que estará apenas de “orelha”, certamente por emissores potencialmente interessados em lhe transmitir uma comunicação enviesada.
Como não duvido da sua honestidade intelectual e acredito que a sua opinião deriva apenas da falta de informação completa e correcta, venho, mais uma vez, enviar-lhe documentação para que possa fundamentar mais rigorosamente os seus comentários.
Junto segue um estudo prospectivo sobre demografia médica, o único existente em Portugal. Foi encomendado pela Ordem dos Médicos à Universidade de Coimbra e resultou de uma colaboração entre a Ordem dos Médicos e o Ministério da Saúde, pois foi feito com base na informação disponível nas bases de dados da Ordem e da ACSS. É o mais completo estudo sobre esta problemática alguma vez feito em Portugal. Concluiu que em 2025 teremos cerca de 9000 médicos desempregados em Portugal, se não emigrarem.
Envio igualmente um anúncio de meia página publicado no Expresso de 8 de Março deste ano, com a posição da Ordem dos Médicos. Como pode verificar, nele não afirmamos que há médicos a mais em Portugal no momento presente e pretendemos lançar um debate sobre emigração médica. Curiosamente, sobre esta matéria os “comentadores oficiais” mantiveram o silêncio.
A Ordem dos Médicos fala de planeamento a médio e longo prazo! Eu sei que falar de planeamento não está na cultura portuguesa e causa alguma confusão a muito gente. Quando a Ordem dos Médicos afirma a necessidade em reduzir o numerus clausus em medicina é porque o efeito de uma decisão tomada hoje só começa a fazer efeito passados 12 anos!!! Planeamento…
O que a Ordem pretende evitar é um gasto absurdo em formação médica (vários milhares de milhões de euros para exportar a custo zero) conforme artigo que envio, da minha coluna quinzenal no Correio da Manhã, mas também evitar a mercantilização da medicina e dos doentes, como é fácil de explicar e de perceber. Os EUA são um exemplo, a geração de actos médicos desnecessários é corresponsável por um desperdício anual de 640 mil milhões de dólares no Sistema de Saúde Americano (vide artigo do New England Journal of Medicine).
Algumas notas:
Foram sucessivos governos que fecharam exageradamente os numerus clausus para medicina, não foi a Ordem dos Médicos! A razão é que uma das formas de reduzir a despesa em saúde, pelo lado da oferta, é reduzir os numerus clausus em medicina, conforme consta dos manuais de Economia da Saúde!
Não percebi a referência aos Colégios de Especialidades… Curiosa referência de quem está tão pouco informado sobre saúde. Quer discutir esta matéria?!
Então mas o Estado contratava médicos para onde não precisava??!!
E se isso acontecia, este Governo demorou três anos para perceber??!! Os Médicos têm sido contratados para onde são necessários, valha-me Deus!!!! Quer debater esta questão?! Actualmente, as fusões hospitalares e de serviços e a redução da capacidade de resposta que daí decorre, com prejuízo da acessibilidade dos doentes, originou a existência de médicos em excesso em alguns serviços, mas isso é da responsabilidade das decisões deste Governo.
Segue um artigo que publiquei sobre uma médica desempregada, especialista em Pneumologia. Agora já fica a conhecer.
Sabe que cada médico Cubano, daqueles importados pelo anterior Governo pela mão do Dr Luís Manuel Cunha Ribeiro, fica ao Estado e Autarquias portuguesas em mais de 5000 euros/mês? Sabe que o Governo sempre se recusou a pagar montante semelhante aos médicos portugueses para se fixarem no interior?
Sabe que estão especialistas em Medicina Geral e Familiar a emigrar e outros sem emprego público porque não há concursos abertos externos? Sim, daqueles que fazem falta ao país mas que o Governo tem sucessivamente desqualificado! Sabia?
Sabe que actualmente entram mais de 400 jovens por ano na especialidade de Medicina Geral e Familiar e que em 2025 teremos mais de 1000 destes especialistas no desemprego?
Sabe que os médicos apenas são contratados para onde o Estado abre concursos, pelo que esta medida agora anunciada pelo Governo como “novidade” é um completo absurdo?! Sempre foi assim! O Estado sempre abriu os concursos onde entendeu e onde precisava de médicos! E é assim que deve ser, nem pode ser de outra maneira. Mas será que durante três anos este Governo andou a contratar médicos para onde não precisava?! Que estupidez!!!
Ao ritmo actual, o país já está a formar especialistas em Medicina Geral e Familiar a mais, o que significa que a curto prazo todos os portugueses terão um Médico de Família, pelo que a esta “medida” anunciada pelo Governo é do mais puro e estrito marketing e da mais completa demagogia política vazia de qualquer sentido ou consequência prática!
Sabe que a Ordem dos Médicos anda há anos a sugerir ao Ministério da Saúde a instituição de medidas de discriminação positiva para fixar médicos no interior do país mas que este Governo se recusa a implementá-las?!
Finalmente, não posso deixar de lamentar que os comentadores portugueses falem tanto sobre assuntos que desconhecem. Por isso mesmo, tal como já fiz no passado, convido-o para um diálogo sobre saúde, com ou sem almoço. Pode colocar-me todas as questões que muito bem entender, que eu responderei fundamentadamente.
Infelizmente, a Ordem dos Médicos é muito acusada de ser corporativa, mas apenas sofre essa acusação “pelas costas”, quando não está presente para se defender. A isso chama-se cobardia.
Tenho desafiado repetidamente o Ministro da Saúde para um debate sobre Saúde. Se o Sr Ministro tem razão, porque não o aceita? Mistério…
Caro Dr Miguel Sousa Tavares, porque acredito na sua honestidade, frontalidade e boa-fé, fico a aguardar uma oportunidade para um diálogo sobre Saúde. Até pode ser na SIC, se o preferir, para que o Sr Dr possa “esmagar” publicamente a Ordem, o seu Bastonário e os seus argumentos e posições, por si consideradas corporativas.
Aguardo a sua resposta.
Com os mais cordiais cumprimentos,
José Manuel Silva,
Bastonário da Ordem dos Médicos”
http://www.leituras.eu/carta-aberta-ao-dr-miguel-sousa-tavares/#XliD4lkU8Kgx8pve.99