Artigo da autoria de Miguel Paiva – Presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga
“Não existe meio de verificar qual é a decisão acertada, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um actor entrasse em cena sem nunca ter ensaiado.” –Milan Kundera
O aparecimento da Covid-19 constituiu-se no maior desafio das organizações e dos sistemas de saúde das últimas décadas. Na minha vida profissional não me recordo de termos de lidar com a incerteza a um nível tão elevado. Não conhecíamos praticamente nada sobre a doença, nada este que, com nuances mais ou menos intensas, incluía as formas da sua manifestação, do seu tratamento e até mesmo a gestão dos espaços onde os doentes seriam tratados.
Perante a incerteza todos reagimos com receios. A sociedade como um todo rapidamente percebeu o perigo e predispôs-se a aceitar decisões drásticas que implicaram a mudança radical do seu modo de vida, como o confinamento, o teletrabalho ou as aulas à distância.
E nós, profissionais do sector da saúde, que nos tornamos nos depositários de todas as esperanças da sociedade em enfrentar e lidar com o problema, também tivemos de nos ajustar a esta nova realidade.
Não irei abordar aspectos de cariz sistémico, pois não tem sido nessa perspectiva que tenho lidado com a Covid-19. Deter-me-ei, essencialmente, naquilo que está a acontecer nos hospitais. Sendo ainda cedo para se extraírem conclusões sobre a forma como conseguimos lidar com a Covid-19, pois ainda estamos longe de poder considerar que o problema está dominado e ultrapassado, há alguns aspectos que me parecem já evidentes.
O primeiro que gostava de realçar é a entrega e espírito de união das equipas de profissionais de saúde. De um modo geral, a emergência da Covid-19 e a entrada dos primeiros doentes nas nossas instituições foi acompanhada por um reforço do sentido de missão que cada um de nós sente e da importância de nos unirmos para, em conjunto, vencermos o “inimigo”. Este sentimento permitiu que as fronteiras, tantas vezes exacerbadas, entre os diferentes serviços e os diversos grupos profissionais se esbatessem muito significativamente de tal forma que, serviços que antes tinha diálogo difícil, se tivessem junto em estratégias comuns e partilhadas.
Nestes tempos difíceis, a única certeza que todos tínhamos é que havia a necessidade imperiosa que tomar decisões rápidas, mesmo que elas pudessem vir a ter de ser revertidas pouco depois. Perante a incerteza absoluta, todos percebemos que só juntos e coesos poderíamos ter sucesso.
Outro aspecto importante tem sido a capacidade de reorganização das instituições. A forma como conseguimos transformar enfermarias “normais” em enfermarias destinadas a doentes Covid-19, com alterações feitas do dia para a noite quanto à infraestrutura (colocação de portas separadoras, por exemplo), quanto aos circuitos operacionais ou quanto à própria forma de trabalhar dos profissionais, com equipamentos de protecção individual adequados.
Ainda a este respeito, é importante realçar as adaptações realizadas pelos Serviços de Emergência, que tiveram de duplicar circuitos, separando as áreas destinadas a doentes Covid-19 das áreas para os restantes doentes, o que levou a uma maior exigência de recursos, mesmo que o número de doentes a recorrer aos serviços de urgência tivesse caído de forma significativa.
Outra área de enormes mudanças tem sido a da medicina intensiva. Tem sido sobre estes serviços que tem recaído uma parte muito significativa do esforço. No caso da nossa instituição isso significou multiplicar por quatro a capacidade pré-existente à pandemia. Esse aumento foi conseguido com o envolvimento de profissionais de outros serviços que se juntaram à equipa da medicina intensiva e com a utilização de espaços do hospital para esta fim. Foi ainda uma oportunidade para descobrir novas abordagens e técnicas, como foi o caso do tratamento de alguns doentes com sistemas de ventilação de alto fluxo (helmet) em alternativa à ventilação mecânica, por exemplo.
Ainda na reorganização interna é importante falar da área da patologia clínica, que se mobilizou para criar um laboratório de biologia molecular, conseguindo, em muito pouco tempo, criar capacidade interna para dar plena resposta aos pedidos derivados da actividade normal da instituição, com especial ênfase nos que são gerados no serviço de urgência e que, por isso, requerem maior celeridade na resposta. Também a este nível, o que fizemos, bem como a generalidade dos hospitais portugueses, foi altamente meritório.
O terceiro aspecto que considero importante na resposta que os hospitais portugueses deram e estão a dar à Covdi-19 resulta do apoio que tivemos com a criação mecanismos de contratação mais ágil, através do Decreto-Lei 10-A. A possibilidade de podermos contratar recursos humanos, sem esperar por autorizações ministeriais, para reforçar as equipas que tratavam dos doentes Covid-19 foi fundamental. Seja pelas necessidades acrescidas de pessoal fruto da especificidade da doença, seja para colmatar as sucessivas ausências por questões de apoio à família, isolamentos profiláticos ou mesmo de doença, este mecanismo foi fundamental para que conseguíssemos manter os serviços a laborar na sua plenitude.
Estes mecanismos de contratação pública também são importantes em momentos em que os mercados de fornecimento de EPI ou de equipamentos tem estado a viver uma instabilidade caótica. Comprar tem sido um desafio muito difícil e a possibilidade do recurso a este instrumento permitiu-nos conseguir melhores respostas e garantir que nada tivesse faltado.
Ainda a este respeito, é também justo enaltecer o papel que teve, nos primeiros momentos, em que os mercados de EPI e de equipamentos não respondiam, a criação da Reserva Nacional destes materiais, criada pelos SPMS e pela ACSS. Durante várias semanas tivemos de gerir stocks ao minuto e foram muitas as vezes em que foi a Reserva Nacional a única que nos valeu, assegurando-nos com os EPI que os nossos profissionais precisavam para trabalhar.
O quarto aspecto a referir é a cooperação entre as instituições do sistema. Direi adiante que considero ser uma área onde podemos ainda melhorar, mas é justo referir momentos importantes, como a disponibilidade dos grandes hospitais em apoiar os restantes logo no início da pandemia na realização de testes ou a colaboração das Administrações Regionais de Saúde na disponibilização de camas nos momentos de maior pressão, seja na rede dos hospitais públicos, seja rede convencionada entretanto formada que incluiu o Hospital Militar, unidades do sector social e do privado.
O quainto aspecto que gostaria de referir é o apoio que sentimos por parte da comunidade. De norte a sul do país, todos sentimos que as pessoas estavam connosco. Genuinamente, os portugueses perceberam a importância do Serviço Nacional de Saúde e do papel dos profissionais de saúde. E, percebendo-o, estiveram com eles e apoiaram-nos.
No caso da nossa instituição, recebemos donativos em dinheiro, donativos em equipamentos médicos, donativos em equipamentos de protecção individual, donativos dos mais diversos que demonstraram a generosidade imensa das pessoas e a vontade em mostrar-nos que estavam connosco. Este gesto das pessoas foi acompanhado pelo das autarquias locais e de tantas e tantas empresas e instituições que fizeram tudo o que estava ao seu alcance para nos ajudar.
Este aspecto, mais do que aquilo que teve na forma como se materializou, tem um impacto muito positivo no reforço emocional de quem tem estado a trabalhar em sobre esforço durante todo este tempo.
Não quero terminar este artigo sem deixar breves notas sobre aspectos nos quais se tem trabalhado muito e que devem continuar a merecer a nossa atenção.
Uma dessas notas consiste em refletir sobre a situação dos doentes que padecem de outras patologias que não a Covid-19. É incontornável reconhecer que o nível de esforço e de mobilização de recursos para lidar com a Covid-19 tem limitado a capacidade do sistema e de cada uma das organizações se dedicar aos outros doentes.
No caso dos hospitais, aquilo que sentimos é que os doentes que já estão acompanhados, muito particularmente aqueles que apresentam quadros clínicos mais graves, têm sido tratados de acordo com o que está previsto. Na nossa instituição e em muitas congéneres, isto é evidenciado na diminuição das Listas de Inscritos para Cirurgia, das Listas de Espera para Consulta e do grau de cumprimentos dos tempos máximos de resposta garantida. Parece, pois, estarmos perante fortes indícios de nos preocuparmos agora com a forma como está a acontecer o acesso dos doentes ao sistema, algo que terá de passar por uma intervenção não circunscrita aos hospitais, de âmbito mais global.
Outro aspecto ao qual deveremos atender é a criação de mecanismos de calibração da rede prestadora que se ajustem, em cada momento, às reais necessidades globais. Um hospital tem uma certa capacidade que, mesmo sendo capaz de ser aumentada das formas que vimos, pode não ser suficiente para atender às necessidades da população que serve. Aliás, como vimos, a procura de cuidados para doentes Covid-19 não é uniforme em todas as regiões e evolui ao longo do tempo de forma muito substancial.
É neste contexto, altamente volátil, que é importante a existência de uma capacidade de gestão de rede que permita a alocação dos recursos disponíveis em tempo oportuno a quem deles efectivamente necessite naquele momento. A Covid-19 demonstrou que a existência das redes de referenciação hospitalar, sendo um instrumento importante, carecem de ser complementadas com a existência de uma gestão em tempo real que, dotada da informação quanto à às capacidades (instalada e utilizada), esteja investida do poder de definir aquilo que corresponde à melhor alocação global de recursos. Ao longo da evolução da pandemia temos sentido que esta gestão de rede tem melhorado de forma muito significativa, como já referi com o papel das ARS, mas parece-nos ser algo ainda a aprofundar.
Ainda a este respeito, entendo ser importante dedicarmos atenção ao afinar dos modelos de previsão de procura. Numa doença nova é impossível fazer previsões quanto à sua difusão que sejam garantidamente acertadas. Mas com o aumento do conhecimento e dos estudos epidemiológicos, este aspecto deve continuar nas nossas prioridades, pois a antecipação das tendências pode permitir que nos preparemos com mais antecedência, melhorando desta forma a alocação dos escassos recursos e evitando a necessidade de dependermos tanto da enorme capacidade detida pelos portugueses que é a improvisação.