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A GESTÃO DA PANDEMIA E O FUTURO DO SISTEMA DE SAÚDE EM PORTUGAL

Artigo da autoria de José Miguel Boquinhas – Médico, consultor em saúde, Ex-Secretário de Estado da Saúde

Quando em março de 2020 nos deparámos com os primeiros casos de infeção a Covid19 muitos de nós estávamos longe de imaginar o que aí vinha. Não deixa, no entanto, de ser curioso, revisitarmos algumas opiniões na altura expressas por peritos, quer da DGS, quer de outras entidades, quer a título pessoal por parte de comentadores, médicos ou investigadores, que Portugal poderia vir a ter cerca de 1 milhão de casos o que na ocasião foi considerado alarmista. A verdade é que já vamos a caminho dos 800.000 e é bem provável que possamos ultrapassar aquele número até ao final de 2021, sendo expectável que segundo os epidemiologistas o verdadeiro número possa vir a situar-se entre os 1,5 milhões e os 2 milhões, contando com toda a população infetada com ou sem sintomas, ainda que o ritmo da vacinação acelere a imunidade de grupo que se consiga instalar lá para o final do verão.

Portugal adotou no início da pandemia um comportamento que foi elogiado em todo o mundo com as medidas rapidamente tomadas, comportando-se o povo português de uma forma exemplar, cumprindo as regras emanadas das autoridades de saúde, sobretudo, no que respeita ao confinamento. Era necessário na altura levar a efeito medidas de higiene sanitária o mais rapidamente possível, não só para controlar a pandemia, mas também para dar tempo a nos prepararmos para o agravamento da situação, visto a escassez de equipamentos de proteção individual, ventiladores e camas de cuidados intensivos ser por demais evidente, não só em Portugal como na grande maioria dos países, com exceção de um ou outro como a Alemanha e  Áustria que, curiosamente, desde sempre tiveram camas em excesso e, até, eram muitas vezes criticados por serem ineficientes na gestão dos internamentos nos seus hospitais, já que o excesso de camas sempre levou a um escusado aumento do número médio de dias de internamento por falta de pressão para dar altas.

A evolução da pandemia nos outros países veio dar razão a Portugal na forma como geriu a situação, mas diga-se em abono da verdade, que o êxito, apesar de significativo, não era assim tanto como a imprensa internacional declarava, tendo em conta a comparação com outros países europeus. Em todo o caso, uma boa performance face a outros países bem mais ricos que o nosso.

No entanto, nunca conseguimos baixar o suficiente durante o verão e princípio do outono de modo a ficarmos salvaguardados de uma 2º ou 3ª vagas mais violentas. E assim, chegámos ao Natal numa situação relativamente frágil. E aí tudo descambou. O governo face à pressão dos grupos económicos e das pequenas e médias empresas, sobretudo, na área da restauração e da cultura, mas não só, acrescido da pressão para não encerrar as escolas com argumentos relacionados, quer com a fragilidade dos alunos mais carenciados, quer com atrasos futuros na evolução da sua aprendizagem, viria a tomar medidas escalonadas no tempo quando deveria ter tomado a iniciativa de fechar o Natal e as escolas no mesmo momento. A variante inglesa, de muito maior contagiosidade e perigosidade, só viria a agravar o problema como hoje é consensual entre epidemiologistas e virologistas. É claro que nessa ocasião, até houve elogios ao governo, provenientes, quer da área política, quer empresarial, por não matar a economia, mas a verdade é que teria de vir a emendar a mão e só recentemente o confinamento foi mesmo a sério com os resultados positivos de melhoria significativa, quer nas mortes, quer nos novos casos. O virologista Pedro Simas viria mesmo a afirmar que Portugal arrisca-se a passar do pior país do mundo em janeiro para o melhor em termos de rapidez de saída desta terrível vaga que atormenta toda a europa e o mundo em geral, com exceção, até agora pelo menos, dos países africanos que por razões ainda não totalmente compreendidas, apresentam muito menor número de casos.

Mas se a pandemia trouxe graves problemas em termos sanitários, económicos e sociais e, sobretudo, pela quantidade de mortes que tanto têm pesado sobre muitas famílias, à semelhança de outras crises de diversa natureza que têm atingido as sociedades, também trouxe oportunidades que me parece possível elencar, sobretudo, ao nível do sistema de saúde, mas também ao nível económico e de uma nova organização da nossa capacidade produtiva e empresarial. O desenvolvimento da indústria ligada à saúde de uma forma mais consistente, setor que tem sido muito esquecido pelo Estado e pelas empresas, pode ter aqui uma janela de oportunidade e um importante estímulo.

As exportações em saúde podem vir a ter um impacto mais significativo no total das exportações do que atualmente têm, se soubermos aproveitar bem este momento, já que o recente êxito do crescimento das exportações tem sido conseguido, no essencial, à custa dos produtos farmacêuticos, quer produtos de base, quer, sobretudo, preparações farmacêuticas. As exportações portuguesas em saúde, representavam em 2008, 627 milhões de euros dos quais 473 milhões se referiam a produtos farmacêuticos. Em 2019 este valor ultrapassou os 1500 milhões, representando um aumento de 14,5% em relação a 2018, e mais de 1100 milhões em produtos farmacêuticos. Apesar deste crescimento muito consistente, nota-se um valor ainda muito baixo em relação a outros produtos de saúde como sejam os instrumentos e material médico-cirúrgico, cerca de 300 milhões, e os equipamentos de radiação e electromedicina, cerca de 15 milhões. Esperava-se antes da crise que em 2025 as exportações em saúde pudessem chegar aos 2,5 mil milhões de euros, o que significa que poderemos facilmente ultrapassar este valor, face à oportunidade criada pela crise da Covid19.

Um dado importante revelador da dinâmica existente no setor da saúde antes da pandemia, foi o facto de, segundo o European Patent Index Report, em 2019 ter havido um aumento de 57,7% no número de pedidos de patente com origem portuguesa face a 2018, contribuindo para este aumento o crescimento de 83,3% na área das tecnologias médicas e de 35,7% na área dos produtos farmacêuticos. Temos razões para acreditar que quando esta pandemia terminar e face à experiência vivida pela UE, se perceba da necessidade do desenvolvimento da indústria ligada à saúde de modo a não ficar dependente de países terceiros, nomeadamente da China, como foi notório durante a presente crise.

Para além das questões de natureza económica, três áreas na saúde virão certamente a melhorar muito no pós pandemia: a saúde pública, sobretudo, ao nível do crescimento do número de médicos e recursos humanos em geral, as unidade de cuidados intensivos, que passarão a estar dotadas de um maior número de camas e ventiladores, e a área dos recursos humanos, onde se assistirá ao aumento nos setores mais carenciados, sobretudo, no pessoal de enfermagem, embora se espere também algum crescimento noutras profissões de saúde, como psicólogos e virologistas, ou mesmo noutras áreas não relacionadas diretamente com a pandemia, como nutricionistas ou terapeutas da fala, entre outros. Como consequência de tudo isto, haverá um aumento global do orçamento para a saúde, que passará, finalmente, a estar dotado das verbas necessárias para se cumprir a tão desejada melhoria global do SNS. Acresce, ainda, a necessidade que foi evidente durante a crise, de um maior compromisso por parte da UE e de uma maior solidariedade entre os países, e uma política de saúde comum entre os Estados em diversas áreas. Reflexo disto, é o facto de a saúde ser um dos quatro eixos que será contemplado com fundos comunitários de muitos milhões de euros nos próximos anos.

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