“Estávamos a entrar numa década onde imperava o crescimento económico, o incremento do investimento nos sistemas de saúde a par com a aposta na sua inovação, na capacidade de resposta ao envelhecimento da população e ao aumento de doenças crónicas graves daí decorrentes. Para tal, aprovavam-se inovações terapêuticas em sede de FDA, EMA Infarmed, introduziam-se essas inovações no seio das organizações conscientes do impacto financeiro que isso acarretava, mas no final do dia, garantiam-se melhores níveis de saúde das populações pela via de uma maior diferenciação e especialização tecnológica, aperfeiçoamento da qualidade assistencial e melhores outcomes.
De repente tudo mudou. Não haverá “volta ao normal” quando a crise terminar. Há 3 meses ninguém sabia que a COVID-19 existia. Agora o vírus espalhou-se por quase todo o mundo, infetando pelo que se conheça cerca de 872.974 pessoas e muitas outras mais cujos números desconhecemos.
O Momento singular e transformador que vivemos atualmente, perante este inimigo invisível que está a tornar cada vez mais vivas as fragilidades dos nossos sistemas de saúde, quebrou os SNSs de todo o mundo, encheu hospitais e esvaziou os espaços públicos. Quebrando os tempos de paz modernos.
É difícil, neste momento, pensar além das próximas semanas, enquanto lutamos para nos adaptarmos ao novo mundo do COVID-19, e preparamos o seu impacto nos hospitais e demais organizações de saúde.
Os sistemas de saúde estão em pé de guerra para alocar consecutivamente recursos suficientes para dar resposta a todos os casos que vão surgindo e para gerir esta situação nos próximos dias, semanas e até quem sabe meses, nomeadamente, implementação de serviços de urgência específicos com equipas dedicadas, criação de novos serviços de internamento, disponibilização de maior número de camas, dotações adequadas de profissionais de saúde nos serviços (face à prevalência de profissionais de saúde infetados), onde a escassez mais crítica corresponde aos intensivistas nas unidades de cuidados intensivos e apetrechamento dos serviços com mais equipamento tecnológico (ventiladores, suporte cardiovascular, fármacos, testes, proteção individual eficazes, etc)
Uma grande variedade de intervenções de saúde pública tem vindo a ser implementada, onde inúmeros esforços estão em curso para aliviar a escassez de recursos de saúde tão observada.
Ao mesmo tempo, porém, fica claro que os efeitos desta “Guerra” serão sentidos nos sistemas de saúde muito depois desta cessar.
De uma forma geral, não passámos ainda o pico da infeção e temos mais perguntas do que respostas. Mas, há já algumas lições que podemos tirar. E o que é que temos vindo a aprender com esta situação?
Infelizmente, deparamo-nos com a falta de preparação dos sistemas de saúde para esta pandemia. Especialistas em doenças infeciosas e epidemiologia têm descrito os piores cenários possíveis com a disseminação não controlada de um novo vírus, tanto em termos de imunidade quanto de preparação.
Os números preocupantes de Itália e de Espanha mostram-nos que cerca de 9% e 13%, respetivamente, daqueles que morreram com o vírus eram profissionais de saúde.
Quando as capacidades dos sistemas são excedidas, pode ser necessário tomar decisões de racionamento que vão muito além dos doentes com COVID-19.
O crescimento exponencial de casos pode transformar uma emergência de saúde pública numa crise operacional. Cada vez que se implementam medidas de contenção pública, estas levam cerca de uma semana ou mais a produzir o efeito desejado. Um bom exemplo disso, é o caso do período de incubação de 2 a 7 dias associado a uma espera pelos resultados dos testes de 2 a 3 dias, onde os novos casos refletem infeções de mais de uma semana atrás.
Cerca de 15% das infeções resultam em estado grave de doença, estes doentes, requerem uma média de 13 dias de suporte respiratório em internamento. O longo período de tempo de tratamento aumentará ainda mais a necessidade de recursos, situação esta, facilmente explicado pela lei de Little. Este desequilíbrio entre a oferta e a procura de cuidados pode resultar em mortes, especialmente, quando nos referimos a serviços de cuidados intensivos.
Por exemplo, num hospital com uma lotação de 100 camas numa unidade de cuidados intensivos, se em determinado momento 70% da lotação já estiver ocupada, as 30 camas restantes são a capacidade efetiva para tratar doentes com COVID-19. Devido à elevada demora média de tratamento o número de novos doentes que pode ser internado/dia durante o surto é amplamente reduzido. A admissão de mais de 2,3 doentes/dia (30 camas divididas por 13 dias) com insuficiência respiratória levará à incapacidade de tratar todos. Neste caso decisões de racionamento passam a ser necessariamente urgentes (a 11 de março, o Colégio Italiano de Anestesia, Analgesia, Reanimação e Terapia Intensiva foi forçado a publicar diretrizes para o racionamento), ou seja, na incapacidade de internar todos os casos, os médicos serão forçados ao impensável: racionar os doentes com maior probabilidade de sobreviver, enquanto deixam outros morrerem.
A par com as mortes por COVID 19 prevalecerão um conjunto de mortes indiretas, já que os hospitais não conseguem dar resposta aos episódios habituais de enfartes, AVCs, acidentes, etc. Sendo este é o pior cenário.
Assistimos ainda, à redução da procura de cuidados nas urgências, facto explicado pelas pessoas deixarem de ter confiança e terem medo de ser contagiadas (não conhecem que os serviços e as equipas que tratam doentes com COVID-19 estão separados, limitações decorrentes do isolamento social, e de pendor financeiro).
Também fica claro, que a médio prazo, necessitamos de mudar para sistemas cada vez mais baseados em cuidados preventivos e numa verdadeira saúde pública. No entanto, essa transição requer mudanças complexas e de longo alcance, as quais geralmente são implementadas faseadamente ao longo de vários anos.
A preocupação maior é que, essas mudanças sejam exigidas no momento em que os sistemas de saúde estejam financeira, operacional e psicologicamente esgotados. Sendo provável que a recuperação se vislumbre difícil o suficiente sem a necessária aceleração para uma transição para formas totalmente inovadoras de prestar e avaliar cuidados de saúde (ex:value-based care, entre outras).
Com base neste cenário, qual o futuro dos sistemas de saúde?
Os hospitais na sua atividade assistencial e de gestão terão que fazer face às consequências financeiras do COVID-19, tal como outras grandes indústrias, só que neste caso particular de uma forma ainda mais profunda e eficaz.
Proteger a saúde é uma responsabilidade de todos. A boa saúde começa na comunidade. A curto-médio prazo deve-se considerar e repensar a forma como os sistemas de saúde estão estruturados, a sua sustentabilidade e a sua capacidade a todos proteger em tempos de crise.
Teremos que ser visionários e prepararmo-nos para as necessidades futuras e para um planeamento sério pós-período pandémico. Autoridades nacionais e europeias de saúde pública há muito que apontam para a necessidade de formar maior número de profissionais de saúde, maximizar a sua formação continua, e ainda, maximizar a dotação de profissionais nos vários serviços. Bem como, apontam ainda, para a necessidade de se minimizarem as desigualdades em saúde evitáveis e para o incremento da literacia em saúde.
Esta transformação a par com a redução da incidência e prevalência de doenças crônicas aliviará alguma pressão sobre os cuidados especializados, indo de encontro aos desafios de sustentabilidade que os sistemas de saúde enfrentam, pela via da aposta em cuidados cada vez mais custo-efetivos e com um maior value for the money por unidade monetária gasta. O que leva a que estes sistemas sejam capazes de responder de forma mais eficaz a novas crises.
Depois desta crise passar, não devemos negligenciar as fragilidades ocultas dos atuais sistemas de saúde expostos a epidemias, devendo-se continuar a promover a qualidade dos cuidados prestados e maximizar a obtenção da sua eficiencia. E ainda, melhorar o acesso a cuidados de saúde.
Além disso, há soluções para resolver essas fragilidades que podem resultar no colapso dos sistemas de saúde. E neste sentido, terá que ser acautelada a eterna questão de subfinanciamento crónico dos hospitais. Pois, se na ausência desta pandemia o seu desempenho financeiro já se tornava num dos seus maiores desafios, agora, mais do que nunca, será necessário um reforço dos seus orçamentos. Uma vez que, toda a atividade programada que ficou adiada terá que ser efetivada, e os casos não tratados no período pandémico que resultaram em situação mais graves terão que ser tratados, onde associada a estes, surgirão naturalmente, os novos episódios de doentes, os quais aumentarão também devido aos efeitos colaterais dos tratamentos da COVID-19 e respetivas intervenções para mitigar o surto.
Para fazer face a esta elevada procura em cuidados de saúde (aumento de “sotck” de doença), impõe-se que sejam tomadas medidas que reduzam o impacto desta situação nas organizações de saúde com uma menor utilização de recursos.
As intervenções do lado da procura são críticas, mas terão a capacidade de reduzir o consumo futuro de recursos, os quais sofrerão uma pressão severa caso não venham a ter uma intervenção política eficaz.
Se o financiamento dos sistemas de saúde não for o mais adequado, tal induzirá a uma oferta reduzida de cuidados, a um diminuta qualidade e a iniquidade no acesso, pelo que, deverá estar na agenda política a criação de um fundo específico de financiamento para os sistemas mais afetados com medidas diferenciadas para diferentes tipos de patologias a tratar.
A COVID-19 já levou à reafetação de recursos de saúde em muitos países. É provável que isto seja sucedido por uma redução de curto prazo na disponibilidade de recursos humanos para a saúde, devido a riscos de doenças e burnout. No curto-médio prazo, também se antevê que os gastos dos governos em saúde decresçam. Devido à inevitável redução nas receitas fiscais, associada à interrupção económica; e aumento dos requisitos de serviço da dívida, associados a aplicação de medidas de apoio económico. Neste contexto, as estratégias do lado da oferta são cruciais, pois ajudarão a expandir o impacto potencial dos recursos de saúde disponíveis. Assim, para a obtenção de uma sustentabilidade a médio prazo, devem-se a nível politico:
– Desenvolver estratégias para mitigar o aumento esperado da procura e identificar áreas de prestação de cuidados em que os custos possam ser reduzidos com o menor impacto possível. Isso incluirá a identificação de intervenções com elevada relação custo-benefício, que oferecem uma profícua relação custo-efetividade.
– Estabelecer um plano de ação destinado a dirimir o impacto das reduções esperadas no fornecimento de recursos disponíveis para os sistemas de saúde.
-Definir uma estratégia para dar resposta eficaz aos cuidados perdidos (nos meses do combate ao COVID 19), a qual pode incluir, incremento dos serviços de telemedicina, desenvolvimento de programas mais atrativos de produção adicional maximizando a utilização eficiente da capacidade instalada dos SNSs,).
-Desenvolver uma estratégia global de busca de novas terapêuticas, ou seja, continua utilização de inovação terapêutica, que vai surgindo, que mude significativamente o curso das doenças crónicas graves e a realidade da necessidade dos cuidados a oferecer no futuro.
Sabemos todavia, que este não é um caminho fácil, e envolve esforços adicionais que obrigam a um alinhamento conjunto de vários setores da sociedade.
Artigo de Joana Cachulo
Especialização em Administração Hospitalar – Escola Nacional de Saúde Publica – Universidade Nova de Lisboa;Doutoranda em Administração em Saúde – ISCSP Universidade de Lisboa .Responsável Setor da Saúde AFMP.