Queridos contribuintes portugueses, dirijo a vós a seguinte mensagem, uma vez que me parece perda de tempo tentar comunicar e transmitir algum bom senso à miss “quinhentos euros à hora”.
Nós, médicos, estamos cansados do Serviço Nacional de Saúde. Estamos cansados de assistir à degradação das condições de trabalho que muitos dos sectores públicos, saúde incluída, têm sofrido ao longo dos últimos anos. Estamos cansados de dar a cara por uma instituição que não nos defende. Estamos cansados de ter de responder perante as famílias sobre o porquê de o seu familiar de 95 anos ter de passar uma noite sentado num cadeirão porque não existem macas disponíveis. Estamos cansados de ter de engolir em seco quando questionam a nossa humanidade, mesmo quando só nos apetece dizer alto e bom som que nada temos a ver com a falta de condições que é oferecida a quem nos procura. Sabemos que tentar explicar a uma família que a culpa de não podermos colocar o seu idoso num local mais confortável do que um corredor ou uma sala de cadeirões não é nossa. É perda de tempo. Ninguém vai ouvir. Ninguém vai perceber. Então respiramos fundo, engolimos o sapo e tentamos correr o hospital todo para desencantar mais uma maca, ao mesmo tempo que ouvimos o cirurgião reclamar connosco porque não acha correcto que se ocupem vagas de serviços cirúrgicos para internar doentes médicos. Porque afinal de contas eles são cirurgiões e precisam de operar! E nós sabemos disso. Mas, no fim do dia, se pudermos ter menos uma família a gritar aos nossos ouvidos e internar o velhinho que está há cinco dias no Serviço de Urgência, ouvimos os berros de todos os cirurgiões do hospital, se tal for necessário. Ouvimos, mas custa.
Nós, médicos, estamos cansados do Serviço Nacional de Saúde. Estamos cansados de passar grande parte do nosso horário semanal a desempenhar funções no Serviço de Urgência. Fazer urgência custa, amigos. Custa mesmo. E nem falo propriamente de atender doentes emergentes, críticos ou em risco de vida. Disso gostamos nós! Aquilo que não gostamos é de ser a patrulha da noite, por exemplo. É de passar duas a três noites fora de casa por semana. Por incrível que vos possa parecer, nós, médicos, também temos famílias. Também temos amigos. Também temos vida pessoal. Também gostamos, de vez em quando, de fazer algo mais da nossa vida do que trabalhar e dormir. E se efectivamente a urgência é o sítio onde temos de passar a maior parte do nosso tempo, então pelo menos que nos dêem as condições básicas para fazermos o nosso trabalho com segurança e dignidade. Que nos incluam em equipas verdadeiramente multidisciplinares, que não sejam constituídas apenas por internos acabados de sair das faculdades, que por muita qualidade que possam ter, não têm ainda a experiência e segurança necessária para desempenhar uma actividade como a de urgência.
Nós, médicos, estamos cansados do Serviço Nacional de Saúde. Estamos cansados de passar grande parte do nosso horário semanal a desempenhar funções em Serviços de Urgência sem condições básicas para o desempenho das nossas funções em segurança e com dignidade, rodeados de internos e médicos indiferenciados que pouca ou nenhuma experiência ou aptidão têm para fazer urgência, respectivamente. E se efectivamente for nestas condições que temos de trabalhar, então pelo menos que sejamos pagos em conformidade com a responsabilidade que nos é pedida. Porque fazer urgência custa, amigos. E fazer urgência à noite custa ainda mais. E fazer urgência à noite em equipas indiferenciadas e sem condições custa muito mais ainda. Então se assim é, porque é que somos todos pagos ao preço da uva mijona? Não temos todos contas para pagar? Não temos todos filhos no colégio ou na creche? Rendas de casa? Rendas do carro? Água, luz e gás? Se a lei da oferta e da procura se aplica a tudo neste país, particularmente o imobiliário, porque é que só na saúde é que somos obrigados a trabalhar mais, melhor e por menos?
Nós, médicos, estamos cansados do Serviço Nacional de Saúde. Estamos cansados de ter um contrato de trabalho de 40 horas semanais e darmos por nós a trabalhar sistematicamente de 50 horas para cima, sem receber qualquer tipo de compensação ou remuneração por isso. Estamos cansados de passar os nossos dias a tentar que o sistema funcione. A fazer funções que não nos competem. A trocar tinteiros de impressoras, a reiniciar computadores, a imprimir e preencher papelada inútil atrás de papelada inútil, a colher e levar tubos de sangue ao laboratório porque não há mais ninguém disponível. Estamos cansados de esperar horas e horas por exames complementares de diagnóstico básicos e dias a semanas por exames complementares de diagnóstico mais avançados. Estamos cansados de passar o dia a pedir favores a este e àquele como se fosse para o nosso paizinho. “Por favor, faz-me lá esta TAC”, “Por favor, vai lá ver-me este doente”…
E agora perdoem-me pelo que vou dizer, mas nós, médicos, estamos cansados de vocês também. Estamos cansados que nos exijam cada vez mais por cada vez menos, que digam aos berros e de boca cheia que nos pagam o curso, quando qualquer um de nós durante o internato paga o seu próprio curso e o de mais uns quantos. E talvez ainda sobre alguma coisa para pagar um ou outro rendimento social de inserção ou baixas médicas por dores nas costas. Estamos cansados que nos procurem por tudo e por nada. Dói a barriga? Vamos à urgência. Dói a unha do pé? Vamos à urgência. Discutimos com o namorado? Vamos à urgência. Bebemos uns copos a mais? Vamos à urgência. Precisamos de baixa porque não nos apetece muito ir trabalhar amanhã? Vamos à urgência. Fizemos sexo desprotegido e temos medo de estar grávidas? Vamos à urgência. Comemos que nem uns abades no fim-de-semana e agora temos a Diabetes completamente descompensada? Vamos à urgência. E por aí fora. E se efectivamente ser médico e trabalhar na urgência implica passar metade ou mais do nosso tempo a resolver questões que não são urgentes, muitas nem sequer problemas de saúde são, então que assim seja. Mas por favor, parem de agir e falar como se vos devêssemos alguma coisa. Muita gente queixa-se que os médicos utilizam linguagem difícil de entender por parte do cidadão comum. Nesse sentido, perdoem-me a linguagem vulgar e permitam-me que vos transmita de forma clara a seguinte mensagem:
Nós, médicos, não vos devemos rigorosamente nada.
Atenciosamente,
Um médico cansado do SNS.