Em 2014 foram 269 os clínicos que pediram à Ordem dos Médicos os certificados para exercer a profissão noutro país. O PÚBLICO conta as histórias de quatro médicos emigrantes. O desalento que levou os médicos a sair do país e a não acreditar no regresso
Nadine Ferreira é neurologista e emigrante. Faz parte do grupo de 269 médicos portugueses que pediram durante o ano de 2014 à Ordem dos Médicos os certificados necessários para poderem exercer a profissão noutro país. Para trás deixou o Hospital Garcia de Orta, em Almada, e mudou-se com o marido cardiologista e as três filhas para França. Um caminho que já tinha sido percorrido em anos anteriores por outros colegas. Em 2013 tinha sido a vez da anestesista Ana Gonçalves, em 2011 do médico de família Ricardo Gabriel e um ano antes da interna de ortopedia Ana Carvalho.
Em comum, os quatro médicos portugueses têm o sentimento de desalento que os fez sair e nenhum acredita que seja possível voltar um dia. Todos tinham emprego em Portugal e garantem que os salários no estrangeiro – que chegam a ser cinco vezes superiores – não foram o mais importante para a concretização da mudança. A falta de condições de trabalho e a degradação do Serviço Nacional de Saúde foram a gota de água para todos eles e ainda é com um sentimento agridoce que vêem juntar a palavra emigrante à profissão de médico, até porque, como salienta Ana Gonçalves, “Portugal está a deixar sair uma geração de quadros qualificados de que precisa” – e “atrás vão os filhos”. Apesar disso, prefere falar em “globalização”. Nadine Ferreira também gosta de se definir como “cidadã de dois países”.
De acordo com os dados da Ordem dos Médicos enviados ao PÚBLICO, durante 2014 foram 269 os clínicos que pediram a este organismo os certificados para exercer a profissão noutro país, tendo sido este o ano mais expressivo em termos de pedidos e o único em que foram confirmadas caso a caso as saídas. Dos 127 médicos que a ordem conseguiu contactar e que responderam, 79 confirmaram que saíram mesmo. Em 36 dos casos eram médicos com idades entre os 25 e os 34 anos e 21 tinham entre 35 e 44 anos. Entre os 55 e os 65 também emigraram 12 médicos. Em 16 dos casos o destino foi o Reino Unido, mas houve igualmente dez clínicos que se mudaram para França, nove para Angola, oito para Espanha e seis para a Alemanha. “Há 49 médicos que referem ter contrato, 29 dos quais como especialistas”, adianta a Ordem dos Médicos.
“Não saímos por desemprego, desistimos foi de Portugal”
Ana Gonçalves, 54 anos, anestesista em França
Depois de quase 30 anos de dedicação ao Serviço Nacional de Saúde, Ana Gonçalves disse “basta”. Emigrou. Ou, como a anestesista de 54 anos prefere dizer, “globalizou-se”. “Agora tenho a minha vida em Portugal e trabalho em França”, conta, em referência às viagens constantes para estar com o marido, filha e restante família. A mudança aconteceu em meados de 2013. “Senti-me de tal maneira usada por este Governo que decidi que estava na altura de sair. Estavam a tentar expulsar os quadros superiores e a segurança e a qualidade para os doentes deixaram de fazer parte do vocabulário do Governo”, lamenta a médica.
Soube da vaga para ir abrir um hospital novo em França através de uma empresa de recrutamento. Das negociações à prática foi um passo relativamente rápido. O francês não era problema e o salário era cinco vezes superior. Mas o que mais atraiu a anestesista foram as condições de trabalho e a qualidade de vida na pequena cidade entre Bordéus e Toulouse. Já teve grandes desafios: agora está à frente da maternidade que pertence ao hospital. Nada que desconheça. Mais de 20 anos da sua vida foram passados no Hospital Dona Estefânia e desde 2010 que estava na Maternidade Alfredo da Costa (MAC), também em cargos de direcção.
Ana Gonçalves descreve horas de trabalho consecutivas na MAC, que chegavam a ser mais de cem numa semana. “É assustador quando estamos a falar de vidas humanas. Não me sentia capaz de ordenar coisas fora da minha ética profissional. O que assisti foi a uma tentativa de expulsão dos funcionários públicos com mais formação, mais especialização e mais prática.” Para a anestesista, uma saída como a sua tem várias consequências. Primeiro, há falta de especialistas na sua área em Portugal. Depois, destaca que com a saída de médicos mais velhos se está “a perder a capacidade formativa para os mais novos”. Por último, reforça que atrás dos pais vai uma segunda geração de “filhos qualificados”. A filha de Ana é estudante de Arquitectura e está a fazer Erasmus em França. O mais natural é que fique.
No novo trabalho sente-se “contente e motivada”. “Sinto respeito entre todos os elementos do hospital e tudo o que se faz a mais conta”, diz. Com um contrato de 42 horas semanais tem direito a 35 dias de férias por ano, aos quais se juntam mais 15 extraordinários como recompensa do que faz. “Destaco a qualidade, o material, o trabalhar em segurança, sem andarmos a colar coisas com adesivo como acontecia na MAC. Em França a segurança do doente está sempre em primeiro lugar.”
Fonte: Público, 31 de dezembro de 2014