Nove anos depois de apresentado na Assembleia da República uma proposta de lei defendendo legalização do testamento vital, o presidente da Associação Portuguesa de Bioética, Rui Nunes, olha para o início do funcionamento do Registo Nacional do Testamento Vital (Rentev) com “a sensação de dever cumprido”. Passa hoje a ser possível exercer “um novo direito”, escreve o Ministério da Saúde no site onde anuncia a plataforma informática. Mas para ser real a sua efectivação, o médico diz que não basta espalhar folhetos em centros de saúde, é essencial “uma intensa campanha de sensibilização junto dos médicos de família” para que eles expliquem às pessoas para que serve um testamento vital e como se faz.
Um testamento vital, também designado como directiva antecipada de vontade, tem como objectivo deixar expressa a vontade em relação aos cuidados de saúde que se quer, ou não, receber em fim de vida, caso se esteja impossibilitado de o expressar de forma autónoma. Na prática, a hipótese de fazer um testamento vital já existia desde que a lei existe, em 2012, mas cada pessoa tinha que redigir o seu documento e ir a um notário para o documento ser juridicamente válido, algo que podia custar algo como 100 euros. Não se sabe quantos o terão já feito até agora.
O que acontece com a entrada em funcionamento do Rentev é que qualquer pessoa pode fazê-lo, sem custos, e tem assim maior garantia de que a sua vontade será conhecida pelo médico a quem este tipo de decisão possa vir a caber. No caso, por exemplo, de uma entrada na urgência de um hospital, o médico assistente em causa pode saber, por via informática, se a pessoa deixou expressa alguma vontade em relação a cuidados de saúde a receber em fim de vida. Existe liberdade de redacção do documento, mas o Ministério da Saúde aconselha o uso de um modelo em concreto (ver perguntas e respostas).
“Era uma questão de tempo. Portugal não podia ficar fora da modernidade”, diz Rui Nunes, que é também director do Serviço de Bioética e Ética Médica da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, notando que esta possibilidade existe em países como Reino Unido, Alemanha, mas também Itália e Espanha.
Mas o professor diz que agora é essencial “fazer uma intensa campanha de sensibilização aos médicos de família”, porque considera que “deve ser elaborado com aconselhamento médico”, algo que é recomendado pelo Ministério da Saúde: “Antes de subscrever este documento, recomenda-se que debata previamente o assunto com um profissional de saúde da sua confiança, ou com a equipa de saúde que o cuida”, lê-se. No modelo fornecido pelo Ministério da Saúde há um campo, opcional, que o médico pode preencher, a pedido da pessoa, dizendo que deu explicações sobre o assunto ao titular do documento.
“O facto de Portugal chegar tarde tem vantagens”, nota. Noutros países onde já existe esta hipótese “caiu-se ‘no erro’ de conferir ao notário ou advogado o dever da explicação”, diz. Defende que deve ser o médico de família ou o médico assistente a explicar termos como “hidratação artificial” (por sonda ou soro), para que a pessoa tome decisões “em consciência”. “Não basta distribuir um folheto, basta ver o que lhes acontece nos hospitais. Ninguém lhes liga”.
Rui Nunes considera que foi acautelada “a segurança do utente”, no sentido em que “apenas médicos vão poder ter acesso ao documento”. Se houver “acessos não autorizados”, o utente terá disso conhecimento, através do envio automático de um email cada vez que alguém entra no testamento vital, informa fonte oficial dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, empresa pública a quem cabe a gestão dos sistemas informáticos do Ministério da Saúde.
O bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva, chegou a dizer que este instrumento pouco efeito vai ter. “É essencialmente um exercício intelectual que irá ter um impacto objectivo extremamente limitado”. “Os doentes já podiam antes expressar a sua vontade, por escrito, ou através dos familiares”, frisando que a distanásia (prolongamento da vida de um doente incurável através de meios artificiais, inúteis e desproporcionados) “representa uma violação do código deontológico dos médicos”.
Quanto às expectativas de quantos farão este documento, Rui Nunes diz que o Ministério da Saúde espera que se registem 20 a 30 mil este ano. O médico acredita que serão bastantes mais, uma vez que só as Testemunhas de Jeová, interessados naturais nesta possibilidade (devido ao seu desejo, com base religiosa, de não quererem receber transfusões sanguíneas), são cerca de 50 mil.
“O primeiro ano vai ser experimental”, admite mas “esta é uma questão educacional”. Nos países anglo-saxónicos 90% das pessoas internadas ou em lares de idosos têm estes documentos. “No espaço de cinco dez anos”, Rui Nunes acredita que “a adesão será maciça”.
Fonte: Público, 30 de Junho de 2014